Se for possível dilatar paragens, fronteiras, rotas, ou
derrubar muros de areia, este texto se encontrará em um entre, ou
melhor, em um entremeio. Estar entre induz estar entre duas ou
mais coisas. Duas, no nosso caso: entre sol e noite. Por isso, cabe-nos melhor
uma expressão bem empregada pelo crítico literário Maurice Blanchot:
“entre-dois” (Em A CONVERSA INFINITA 1, 2001, p. 35). Pensaremos então: a
possibilidade de um fazer poético no “entre-dois”, no entremeio. Entre o dia
e a noite, façamos abrigo, ergamos: construção. Construir uma morada no
“entre”. Construir e habitar. Apontamos para o filósofo alemão Martin Heidegger
(ref. texto: "Construir, Habitar, Pensar" em ENSAIOS E CONFERÊNCIAS,
2002). Construir para habitar, e mais além: que habitar é construir. Em
habitando. Edificação. Ouçamos o filósofo: A essência de construir é
deixar-habitar. [...] Somente em sendo capazes de habitar é que podemos
construir (HEIDEGGER, 2002, p. 139). E assim construímos uma ponte
entre dia e noite (Heiddeger faz uso da imagem “ponte” como “reunião
integradora” entre espaços, cf. no seu texto, p. 133-134).
Chamemos nosso entremeio de pôr-do-sol. Passagem do dia para noite.
Mescla do amarelo e do azul. A primeira tese que esboço é a de que (i) a
poesia sobrevoa este espaço de entremeio e, em habitando, a poesia é morada,
abrigo. Como diz Heidegger, é a poesia que permite ao habitar ser um
habitar. Poesia é deixar-habitar, em sentido próprio. [...] Entendida como
deixar-habitar, a poesia é um construir (HEIDEGGER, 2002, p. 167). A poesia
é o elo entre dia e noite, a ponte. A poesia, enquanto local de morada, é
aquela que pode aproximar distantes, ir do sótão ao porão, do aéreo ao
terrestre como disse o filósofo francês Gaston Bachelard (Em A POÉTICA DO
ESPAÇO, 1978, p. 293) – valendo-me das particularidades entre os dois
filósofos, principalmente visto que cada um deles tem acepções diferentes no
que concerne ao “habitar”. A poesia ainda é como uma dobra de mar, onde o que
parece longe é perto. A segunda tese que esboço é que, (ii) estando no meio,
a noite torna-se abrigo. A noite abriga o sol. O azul abriga o amarelo. O
fogo, que é um amarelo, é o elemento [como nos mostra o filósofo
neoplatônico Plotino no Tratado 6, Enéadas I] mais leve entre os demais corpos.
Ele é o único que não acolhe em si os outros elementos, enquanto os outros
são por ele penetrados, posto que eles podem ser aquecidos, mas o fogo não pode
esfriar (PLOTINO, 2002, p. 26). Então: o azul acolhe o amarelo. O
que resultará desse desaguar é um estado de “noitessol”, para usar uma
palavra que figura na poesia do poeta Régis Bonvicino (abaixo). Fazer poético
em estado de noitessol é, portanto, transar cores, transar movimentos, é quando
o fundo está na superfície, como diz uma poesia do Paulo Leminski (livro
O EX-ESTRANHO, 2001, p. 61). A escrita em estado de noitessol é meio
silenciosa, meio contemplativa. Uma escrita que tem pressa. Antes que o sol
nasça.
Abaixo, dois poemas de noitessol. Um poema do Régis Bonvicino e um haikai
do Paulo Leminski. Do poema do Régis tomamos o empréstimo da palavra; do poema
do Leminski, um sentimento como elo, e quem quiser tomar a poesia como
sentimento, que possam também a fazê-la de elo.
OUTRAS PALAVRAS
DE UM PÔR-DO-SOL
O sol se põe
Como quem
O sol se põe
Como se não
Girasse
(a terra)
...................
O sol se
sobrepõe:
Noitessol e sal,
Aqui,
Entre pontas
agora convexas
(súbito mergulho
da gaivota)
O sol se
recompõe
Como quem
Pesca.
(Régis
Bonvicino, livro 33 POEMAS, 1990, p. 32).
______________________________
HAIKAI
O amor é um elo
Entre o azul
E o amarelo.
(Leminski, livro
LA VIE EN CLOSE, 1994, p. 129).
Referências:
BACHELARD,
Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os
Pensadores).
BLANCHOT,
Maurice. A Conversa Infinita 1: A Palavra Plural. São Paulo: Escuta,
2001.
BONVICINO,
Régis. 33 poemas. São Paulo: Iluminuras, 1990.
HEIDEGGER,
Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
LEMINSKI, Paulo.
La vie en close. 5ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
___________. O
ex-estranho. 3ª Ed. São Paulo: Iluminuras, 2001.
PLOTINO. Tratado
das Enéadas. Trad. Americo Sommerman. São Paulo: Polar Editorial, 2002.
§
Rodrigo Araujo.