O fazer poético em estado de noitessol

By rodrigo araujo - dezembro 30, 2012

   Se for possível dilatar paragens, fronteiras, rotas, ou derrubar muros de areia, este texto se encontrará em um entre, ou melhor, em um entremeio. Estar entre induz estar entre duas ou mais coisas. Duas, no nosso caso: entre sol e noite. Por isso, cabe-nos melhor uma expressão bem empregada pelo crítico literário Maurice Blanchot: “entre-dois” (Em A CONVERSA INFINITA 1, 2001, p. 35). Pensaremos então: a possibilidade de um fazer poético no “entre-dois”, no entremeio. Entre o dia e a noite, façamos abrigo, ergamos: construção. Construir uma morada no “entre”. Construir e habitar. Apontamos para o filósofo alemão Martin Heidegger (ref. texto: "Construir, Habitar, Pensar" em ENSAIOS E CONFERÊNCIAS, 2002). Construir para habitar, e mais além: que habitar é construir. Em habitando. Edificação. Ouçamos o filósofo: A essência de construir é deixar-habitar. [...] Somente em sendo capazes de habitar é que podemos construir (HEIDEGGER, 2002, p. 139).  E assim construímos uma ponte entre dia e noite (Heiddeger faz uso da imagem “ponte” como “reunião integradora” entre espaços, cf. no seu texto, p. 133-134).
            Chamemos nosso entremeio de pôr-do-sol. Passagem do dia para noite. Mescla do amarelo e do azul. A primeira tese que esboço é a de que (i) a poesia sobrevoa este espaço de entremeio e, em habitando, a poesia é morada, abrigo. Como diz Heidegger, é a poesia que permite ao habitar ser um habitar. Poesia é deixar-habitar, em sentido próprio. [...] Entendida como deixar-habitar, a poesia é um construir (HEIDEGGER, 2002, p. 167). A poesia é o elo entre dia e noite, a ponte. A poesia, enquanto local de morada, é aquela que pode aproximar distantes, ir do sótão ao porão, do aéreo ao terrestre como disse o filósofo francês Gaston Bachelard (Em A POÉTICA DO ESPAÇO, 1978, p. 293) – valendo-me das particularidades entre os dois filósofos, principalmente visto que cada um deles tem acepções diferentes no que concerne ao “habitar”. A poesia ainda é como uma dobra de mar, onde o que parece longe é perto. A segunda tese que esboço é que, (ii) estando no meio, a noite torna-se abrigo. A noite abriga o sol. O azul abriga o amarelo. O fogo, que é um amarelo, é o elemento [como nos mostra o filósofo neoplatônico Plotino no Tratado 6, Enéadas I] mais leve entre os demais corpos. Ele é o único que não acolhe em si os outros elementos, enquanto os outros são por ele penetrados, posto que eles podem ser aquecidos, mas o fogo não pode esfriar (PLOTINO, 2002, p. 26). Então: o azul acolhe o amarelo. O que resultará desse desaguar é um estado de “noitessol”, para usar uma palavra que figura na poesia do poeta Régis Bonvicino (abaixo). Fazer poético em estado de noitessol é, portanto, transar cores, transar movimentos, é quando o fundo está na superfície, como diz uma poesia do Paulo Leminski (livro O EX-ESTRANHO, 2001, p. 61). A escrita em estado de noitessol é meio silenciosa, meio contemplativa. Uma escrita que tem pressa. Antes que o sol nasça.
            Abaixo, dois poemas de noitessol. Um poema do Régis Bonvicino e um haikai do Paulo Leminski. Do poema do Régis tomamos o empréstimo da palavra; do poema do Leminski, um sentimento como elo,  e quem quiser tomar a poesia como sentimento, que possam também a fazê-la de elo.

OUTRAS PALAVRAS DE UM PÔR-DO-SOL
O sol se põe
Como quem
O sol se põe
Como se não
Girasse
(a terra)
...................
O sol se sobrepõe:
Noitessol e sal,
Aqui,
Entre pontas agora convexas
(súbito mergulho da gaivota)
O sol se recompõe
Como quem
Pesca.
(Régis Bonvicino, livro 33 POEMAS, 1990, p. 32).
 ______________________________

HAIKAI
O amor é um elo
       Entre o azul
E o amarelo.
(Leminski, livro LA VIE EN CLOSE, 1994, p. 129).


Referências:
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os Pensadores).
BLANCHOT, Maurice. A Conversa Infinita 1: A Palavra Plural. São Paulo: Escuta, 2001.
BONVICINO, Régis. 33 poemas. São Paulo: Iluminuras, 1990.
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
LEMINSKI, Paulo. La vie en close. 5ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
___________. O ex-estranho. 3ª Ed. São Paulo: Iluminuras, 2001.
PLOTINO. Tratado das Enéadas. Trad. Americo Sommerman. São Paulo: Polar Editorial, 2002.


§

Rodrigo Araujo.

  • Share:

You Might Also Like

0 comentários