minha poesia não canta nada
– como haveria de cantar? –
berra todo nosso sufoco
como um doido na camisa-de-força.
vem do útero do ânus estuprado
do peito doente
da cirrose do fígado.
minha poesia é o pânico
a quarta dimensão terrível
da vida consumada no porto da
barra pesada
das penitenciárias dos hospícios
do pervintin da maconha da
cachaça
do povo na rua
– do povo de minha laia.
minha poesia é o hino
dos libertinos
q conspiram na noite dos generais...
(Ras Adauto, poema “A pombinha e o urbanóide”, in:
26 POETAS HOJE, Org. Heloisa Buarque de Hollanda, 6ª Ed. 2007, p. 251).
Este poema do Ras Adauto é, para mim, um dos que melhor
sintetiza o momento da poesia contracultural brasileira, da poesia marginal
daqueles anos 70, ou poesia clandestina, como chamou Glauco Mattoso em seu
livrinho O que é poesia marginal (Ed.
Brasiliense, 2ª Ed. 1982): o desbunde, a ruptura, a “estética da novidade”, como dizia Leminski (ensaio “Tudo, de novo”,
in: Ensaios e Anseios Crípticos,
2011, p.68), o gozo, a libertinagem, a onda lisérgica, o grito no muro da
página, o “berro e o pânico” de tempos sombrios. A explosividade que foi a
poesia marginal está justamente por ela ter sido o hino dos libertinos, o “poema
porrada” – de Roberto Piva -- que incomodou, e ainda incomoda.
Esta é apenas uma epígrafe. E me perdoe o leitor pelo
salto que faço, agora, para o cinema japonês. O coração solitário de um homem
vive construindo pontes para margens distantes, às vezes margens nenhumas. Quero
falar do hino libertino do cinema de Shuji Terayama (1935-1983): haikaísta,
crítico, dramaturgo e uma das vozes mais radicais e indigestas do cinema
japonês. Tudo em Terayama é anárquico, caótico, inquietante. Suas obras são tão
afiadas quanto a lâmina do samurai-escritor nipônico Yukio Mishima, que
escrevia com a mesma espada do seppuko.
Difícil assistir a alguns filmes de Terayama, pois a própria câmera é tão
delirante quanto seus personagens e suas tramas. Mas isto é só a entrada do
labirinto, pois suas obras tão bem transam o poético, devido ao trânsito do
próprio Terayama, que amava o teatro nô. Prova disso são seus curtas-metragens,
a exemplo de A jaula (1984), sobre o
tempo, ou a temporalidade do ser, tema que é um dos pilares fundamentais do
cinema de Terayama: uma senhora andando em círculos com um relógio de parede,
um homem qualquer (nós mesmos) dentro de um círculo; e Um filme de sombras (1977), sobre a solidão, sobre duplos, sombras
grudadas na parede. Mas é o mundo em colapso do pós-guerra japonês que Terayama
vai encarar em seus longas. Escrevo estas breves notas, como um haikai, acerca de
seus três principais filmes: O imperador
Ketchup (1971), Joguem fora seus
livros e saiam às ruas (1971) e Pastoral:
morrer no campo (1974). E como falamos de haikai – e como me interesso
bastante por esta forma poética – parece exata a pretensão de uma nota (ou
qualquer nota sobre Terayama) em partir dos curtas-metragens para os longas, ou
do mínimo para o máximo, ou do rabisco para o texto, acompanhando o que fez o nosso
estimado crítico Roland Barthes em A preparação do romance (2005), notas de seu último seminário no Collège de France. Neste seminário,
entre 1978-1979 em que defende a tese de que o haikai é a
anotação, a preparação para o romance.
O
imperador Ketchup
Talvez o filme mais
perturbador de Shuji Terayama. Muito mais caótico que o cinema de Teruo Ishii.
Neste filme, crianças com roupas militares e com armas perseguem, escravizam e
matam os adultos em um vilarejo que mais parece um campo de concentração
anti-adultos. A fibra metafórica que Terayama propõe neste filme é genial e
certeira: crianças começam a pregar “leis” que impõem a liberdade
(principalmente a sexual). Um jogo de inversão, se se parte da ideia que a
criança é um “ser em formação”, já que aqui as crianças são tudo, menos “inocentes”
e em “formação”. Aqui está a gênese do cinema de Terayama , e o fio, mesmo que
um longo fio, que liga as pontas deste cinema com a poesia marginal que falamos
na epígrafe desta nota: o gozo livre, o desbunde. Se , do lado de lá, a poesia
marginal nos ensina que a poesia não pode ser algo “comportado”, do lado de cá
o cinema de Terayama por meio de O
imperador Ketchup nos mostra como o cinema que se quer anárquico pode
derrubar os muros da moralidade. O que, talvez, mais choca aquele que assiste a
este filme, são as cenas em que o imperador faz sexo com mulheres escravizadas,
entre a alegria, o gozo e o sadismo.
Mas o que quer Terayama
com crianças sodomizando adultos? Penso nesta questão em dois pontos: (1) aquela
ironia que encontramos no recente filme de Roy Andersson, Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência (2014),
último da trilogia “ser um ser humano”, que expõe, em um humor negro, o que há
de barbárie no ser humano. Em Andersson, ficamos horrorizados com as cenas de
um pobre macaco torturado em um laboratório e de um grupo de idosos que se
divertem diante de uma grande fornalha em que se queimam homens – de longe, lembrando
os campos de concentração nazistas. Em Terayama, o vilarejo, que também lembra tais
campos de concentração, é palco de duas crianças que brincam de “pedra, papel e
tesoura” até caírem em tapas. Duas crianças que mais parecem duas nações em
guerra. O que Terayama e Andersson fazem é uma ironia do trágico humano em
perfeita sutileza. (2) Penso que este
filme de Terayama é, de longe, um bom exemplo daquilo que o filósofo francês
Michel Foucault chamou de “combate da castidade” (ensaio “O combate da
castidade”, 1982, in: Ditos e
Escritos V, 2004). Foucault, neste ensaio, diz que a fornicação, “o mais vergonhoso de todos os vícios”
(Foucault, 2004, p. 106), dentre os vícios tem um certo “privilégio ontológico” com origens no próprio corpo. Ora, o que
está em jogo no filme de Terayama é o lugar da ascese da castidade: do triunfo da
fornicação quando já não há mais muros da moralidade, quando se derruba a
tirania da castidade. Óbvio: cito aqui Foucault pela provocação à sexualidade
que o filme de Terayama propõe. Não há margens para citar Foucault no rol da
questão anárquica que viemos falando, visto que o próprio Foucault nunca se
assumiu “anarquista”, embora tentem alguns críticos propor tal ligação a partir
de trechos anarquistas de suas obras.
Sociedades
de controle segundo Terayama
Ainda nas demandas
foucaultianas, destaco aqui um excerto do ensaio “Post-scriptum: sobre as sociedades de controle”, do filósofo Gilles
Deleuze (in: Conversações, Editora
34, 1992).
Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os
meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é
um "interior", em crise como qualquer outro interior, escolar,
profissional, etc. [...]. "Controle" é o nome que Burroughs propõe
para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro
próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultra rápidas de
controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na
duração de um sistema fechado. (Deleuze, 1992, p. 219).
Esta citação de Deleuze
pode guiar o que destaco dos seus dois filmes: Joguem fora seus livros e saiam às ruas (1971) e Pastoral: morrer no campo (1974). Estes
dois filmes são ótimos esboços deste futuro próximo que é a crise do
confinamento e do controle que fala Deleuze. Joguem fora seus livros e saiam às ruas é o filme mais rebelde na
crítica mordaz às novas configurações da sociedade japonesa ocidentalizada:
bandeira estadunidense sendo queimada na frente de um casal fazendo sexo; drogas;
citações de Maiakovski. O jovem protagonista deste filme (tanto o protagonista
deste, quanto do Pastoral: morrer no
campo são jovens) vive num subúrbio com um pai voyeur e uma avó que mais
parece uma espécie de símbolo da decadência. O desejo do protagonista anônimo é
a liberdade e a perda da virgindade. Esse desejo é expresso por metáfora,
quando este constrói um pequeno avião. É também expresso em uma cena inicial
quando o jovem corre exaustivamente em uma linha de trem, numa fotografia esverdeada
e em rápidos movimentos, deixando o espectador desconcertado. A casa para o
protagonista é o símbolo do confinamento, da prisão, do controle. Em um dos
momentos o jovem tenta internar a avó. Quebrar a casca do ovo. Este é o filme
que melhor sintetiza o sentimento de busca (busca de sentido, talvez) e o
sentimento inquietante que tanto perfilou os anos 70 do século XX.
Esse sentimento de
busca é que põe em diálogo este filme e Pastoral:
morrer no campo. São dois filmes que usam recursos teatrais. Nos dois
filmes aparece constantemente o uso de máscaras. Terayama era dramaturgo amante
do teatro nô, dirigiu o grupo Tenjo Sajiki, visto por Martine Beaulne como um teatro-laboratório de vanguarda – a pesquisadora
em teatro japonês Darci Kusano tem um clássico ensaio em que analisa a crítica
teatral de Terayama, “Tradição e vanguarda no teatro japonês”, 1995. Em um
livrinho bastante didático da Darci Kusano, O
que é teatro nô (Editora Brasiliense, 1984), temos uma ideia da função da
máscara para o teatro nô, e que serve para os dois filmes de Terayama: “As aberturas estreitas da máscara obstruem a
visão do mundo exterior, forçando o ator a voltar seus olhos para o seu mundo
interior. [...] A maior concentração interior faz com que o ator tenha uma
visão mais intensa do seu papel” (Kusano, 1984, p. 40). A máscara, se
tomamos Jung, pode ser a persona –
aquela persona bergmaniana. Terayama parece estar menos próximo do psicanalítico
da máscara. E mais próximo da função teatral de ser uma porta entre o mundo
interior e o mundo exterior. O próprio protagonista de Pastoral: morrer no campo está com o rosto pintado, figurando a
máscara. Neste filme, o protagonista se encontra com o autor (não o autor
Terayama): encontro entre criador e criação, já que este mergulha em sua
própria narrativa para se encontrar com seu alter
ego. Pastoral é, sem dúvida, o
mais intimista, o mais psicanalítico no retorno à infância. Retorno para,
justamente, libertar-se. Com as máscaras, no palco da sociedade de controle em
que os protagonistas atuam e encaram de frente, com toda rebeldia, loucura e
profanação, Terayama nos deixa uma obra de grande beleza (por mais que possamos
discutir o que é o belo). Que pode agradar ou não.
Joguem fora seus livros e saiam às ruas (1971) |
Joguem fora seus livros e saiam às ruas (1971) |
Pastoral: morrer no campo (1974) |
Pastoral: morrer no campo (1974) |
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Rodrigo Araujo