Curva da margem: Shuji Terayama e outros

By rodrigo araujo - fevereiro 04, 2015

minha poesia não canta nada
– como haveria de cantar? –
berra todo nosso sufoco
como um doido na camisa-de-força.

vem do útero do ânus estuprado
do peito doente
da cirrose do fígado.

minha poesia é o pânico
a quarta dimensão terrível
da vida consumada no porto da barra pesada
das penitenciárias dos hospícios
do pervintin da maconha da cachaça
do povo na rua
– do povo de minha laia.

minha poesia é o hino
dos libertinos
q conspiram na noite dos generais...
(Ras Adauto, poema “A pombinha e o urbanóide”, in: 26 POETAS HOJE, Org. Heloisa Buarque de Hollanda, 6ª Ed. 2007, p. 251).



            Este poema do Ras Adauto é, para mim, um dos que melhor sintetiza o momento da poesia contracultural brasileira, da poesia marginal daqueles anos 70, ou poesia clandestina, como chamou Glauco Mattoso em seu livrinho O que é poesia marginal (Ed. Brasiliense, 2ª Ed. 1982): o desbunde, a ruptura, a “estética da novidade”, como dizia Leminski (ensaio “Tudo, de novo”, in: Ensaios e Anseios Crípticos, 2011, p.68), o gozo, a libertinagem, a onda lisérgica, o grito no muro da página, o “berro e o pânico” de tempos sombrios. A explosividade que foi a poesia marginal está justamente por ela ter sido o hino dos libertinos, o “poema porrada” – de Roberto Piva -- que incomodou, e ainda incomoda.

            Esta é apenas uma epígrafe. E me perdoe o leitor pelo salto que faço, agora, para o cinema japonês. O coração solitário de um homem vive construindo pontes para margens distantes, às vezes margens nenhumas. Quero falar do hino libertino do cinema de Shuji Terayama (1935-1983): haikaísta, crítico, dramaturgo e uma das vozes mais radicais e indigestas do cinema japonês. Tudo em Terayama é anárquico, caótico, inquietante. Suas obras são tão afiadas quanto a lâmina do samurai-escritor nipônico Yukio Mishima, que escrevia com a mesma espada do seppuko. Difícil assistir a alguns filmes de Terayama, pois a própria câmera é tão delirante quanto seus personagens e suas tramas. Mas isto é só a entrada do labirinto, pois suas obras tão bem transam o poético, devido ao trânsito do próprio Terayama, que amava o teatro nô. Prova disso são seus curtas-metragens, a exemplo de A jaula (1984), sobre o tempo, ou a temporalidade do ser, tema que é um dos pilares fundamentais do cinema de Terayama: uma senhora andando em círculos com um relógio de parede, um homem qualquer (nós mesmos) dentro de um círculo; e Um filme de sombras (1977), sobre a solidão, sobre duplos, sombras grudadas na parede. Mas é o mundo em colapso do pós-guerra japonês que Terayama vai encarar em seus longas. Escrevo estas breves notas, como um haikai, acerca de seus três principais filmes: O imperador Ketchup (1971), Joguem fora seus livros e saiam às ruas (1971) e Pastoral: morrer no campo (1974). E como falamos de haikai – e como me interesso bastante por esta forma poética – parece exata a pretensão de uma nota (ou qualquer nota sobre Terayama) em partir dos curtas-metragens para os longas, ou do mínimo para o máximo, ou do rabisco para o texto, acompanhando o que fez o nosso estimado crítico Roland Barthes em A preparação do romance (2005), notas de seu último seminário no Collège de France. Neste seminário, entre 1978-1979 em que defende a tese de que o haikai é a anotação, a preparação para o romance. 


O imperador Ketchup

           Talvez o filme mais perturbador de Shuji Terayama. Muito mais caótico que o cinema de Teruo Ishii. Neste filme, crianças com roupas militares e com armas perseguem, escravizam e matam os adultos em um vilarejo que mais parece um campo de concentração anti-adultos. A fibra metafórica que Terayama propõe neste filme é genial e certeira: crianças começam a pregar “leis” que impõem a liberdade (principalmente a sexual). Um jogo de inversão, se se parte da ideia que a criança é um “ser em formação”, já que aqui as crianças são tudo, menos “inocentes” e em “formação”. Aqui está a gênese do cinema de Terayama , e o fio, mesmo que um longo fio, que liga as pontas deste cinema com a poesia marginal que falamos na epígrafe desta nota: o gozo livre, o desbunde. Se , do lado de lá, a poesia marginal nos ensina que a poesia não pode ser algo “comportado”, do lado de cá o cinema de Terayama por meio de O imperador Ketchup nos mostra como o cinema que se quer anárquico pode derrubar os muros da moralidade. O que, talvez, mais choca aquele que assiste a este filme, são as cenas em que o imperador faz sexo com mulheres escravizadas, entre a alegria, o gozo e o sadismo. 

             Mas o que quer Terayama com crianças sodomizando adultos? Penso nesta questão em dois pontos: (1) aquela ironia que encontramos no recente filme de Roy Andersson, Um pombo pousou num galho refletindo sobre a existência (2014), último da trilogia “ser um ser humano”, que expõe, em um humor negro, o que há de barbárie no ser humano. Em Andersson, ficamos horrorizados com as cenas de um pobre macaco torturado em um laboratório e de um grupo de idosos que se divertem diante de uma grande fornalha em que se queimam homens – de longe, lembrando os campos de concentração nazistas. Em Terayama, o vilarejo, que também lembra tais campos de concentração, é palco de duas crianças que brincam de “pedra, papel e tesoura” até caírem em tapas. Duas crianças que mais parecem duas nações em guerra. O que Terayama e Andersson fazem é uma ironia do trágico humano em perfeita sutileza.  (2) Penso que este filme de Terayama é, de longe, um bom exemplo daquilo que o filósofo francês Michel Foucault chamou de “combate da castidade” (ensaio “O combate da castidade”, 1982, in: Ditos e Escritos V, 2004). Foucault, neste ensaio, diz que a fornicação, “o mais vergonhoso de todos os vícios” (Foucault, 2004, p. 106), dentre os vícios tem um certo “privilégio ontológico” com origens no próprio corpo. Ora, o que está em jogo no filme de Terayama é o lugar da ascese da castidade: do triunfo da fornicação quando já não há mais muros da moralidade, quando se derruba a tirania da castidade. Óbvio: cito aqui Foucault pela provocação à sexualidade que o filme de Terayama propõe. Não há margens para citar Foucault no rol da questão anárquica que viemos falando, visto que o próprio Foucault nunca se assumiu “anarquista”, embora tentem alguns críticos propor tal ligação a partir de trechos anarquistas de suas obras.


Sociedades de controle segundo Terayama

          Ainda nas demandas foucaultianas, destaco aqui um excerto do ensaio “Post-scriptum: sobre as sociedades de controle”, do filósofo Gilles Deleuze (in: Conversações, Editora 34, 1992). 

Encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A família é um "interior", em crise como qualquer outro interior, escolar, profissional, etc. [...]. "Controle" é o nome que Burroughs propõe para designar o novo monstro, e que Foucault reconhece como nosso futuro próximo. Paul Virillo também analisa sem parar as formas ultra rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas que operavam na duração de um sistema fechado. (Deleuze, 1992, p. 219).

            Esta citação de Deleuze pode guiar o que destaco dos seus dois filmes: Joguem fora seus livros e saiam às ruas (1971) e Pastoral: morrer no campo (1974). Estes dois filmes são ótimos esboços deste futuro próximo que é a crise do confinamento e do controle que fala Deleuze. Joguem fora seus livros e saiam às ruas é o filme mais rebelde na crítica mordaz às novas configurações da sociedade japonesa ocidentalizada: bandeira estadunidense sendo queimada na frente de um casal fazendo sexo; drogas; citações de Maiakovski. O jovem protagonista deste filme (tanto o protagonista deste, quanto do Pastoral: morrer no campo são jovens) vive num subúrbio com um pai voyeur e uma avó que mais parece uma espécie de símbolo da decadência. O desejo do protagonista anônimo é a liberdade e a perda da virgindade. Esse desejo é expresso por metáfora, quando este constrói um pequeno avião. É também expresso em uma cena inicial quando o jovem corre exaustivamente em uma linha de trem, numa fotografia esverdeada e em rápidos movimentos, deixando o espectador desconcertado. A casa para o protagonista é o símbolo do confinamento, da prisão, do controle. Em um dos momentos o jovem tenta internar a avó. Quebrar a casca do ovo. Este é o filme que melhor sintetiza o sentimento de busca (busca de sentido, talvez) e o sentimento inquietante que tanto perfilou os anos 70 do século XX.

           Esse sentimento de busca é que põe em diálogo este filme e Pastoral: morrer no campo. São dois filmes que usam recursos teatrais. Nos dois filmes aparece constantemente o uso de máscaras. Terayama era dramaturgo amante do teatro nô, dirigiu o grupo Tenjo Sajiki, visto por Martine Beaulne como um teatro-laboratório de vanguarda – a pesquisadora em teatro japonês Darci Kusano tem um clássico ensaio em que analisa a crítica teatral de Terayama, “Tradição e vanguarda no teatro japonês”, 1995. Em um livrinho bastante didático da Darci Kusano, O que é teatro nô (Editora Brasiliense, 1984), temos uma ideia da função da máscara para o teatro nô, e que serve para os dois filmes de Terayama: “As aberturas estreitas da máscara obstruem a visão do mundo exterior, forçando o ator a voltar seus olhos para o seu mundo interior. [...] A maior concentração interior faz com que o ator tenha uma visão mais intensa do seu papel” (Kusano, 1984, p. 40). A máscara, se tomamos Jung, pode ser a persona – aquela persona bergmaniana. Terayama parece estar menos próximo do psicanalítico da máscara. E mais próximo da função teatral de ser uma porta entre o mundo interior e o mundo exterior. O próprio protagonista de Pastoral: morrer no campo está com o rosto pintado, figurando a máscara. Neste filme, o protagonista se encontra com o autor (não o autor Terayama): encontro entre criador e criação, já que este mergulha em sua própria narrativa para se encontrar com seu alter ego. Pastoral é, sem dúvida, o mais intimista, o mais psicanalítico no retorno à infância. Retorno para, justamente, libertar-se. Com as máscaras, no palco da sociedade de controle em que os protagonistas atuam e encaram de frente, com toda rebeldia, loucura e profanação, Terayama nos deixa uma obra de grande beleza (por mais que possamos discutir o que é o belo). Que pode agradar ou não.





Joguem fora seus livros e saiam às ruas (1971)

 
A jaula (1984)



Joguem fora seus livros e saiam às ruas (1971)

Joguem fora seus livros e saiam às ruas (1971)

Pastoral: morrer no campo (1974)



Pastoral: morrer no campo (1974)




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Rodrigo Araujo

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