O poema. O negativo. A tortura. Notas para encerrar 2014

By rodrigo araujo - dezembro 23, 2014

Este blog não pode encerrar o ano de 2014 sem sublinhar dois poemas nucleares do recente livro ESTADO CRÍTICO (2013, Editora Hedra), do poeta paulistano Régis Bonvicino. Num livro cheio de citações, que absorve o barulho e o silêncio (veja o humor e contradição nisto) da grande metrópole, perpassado por metalinguagem, estes dois poemas que aqui reproduzo corporalizam bem algo que sempre tenho em mente acerca do que é poesia, do poder da poesia, de sua função: ser ruptura e subversão (da forma, a "desestabilização" como vemos em Heloisa B. H. em seu prefácio à antologia 26 Poetas Hoje, referente à poesia marginal, ou clandestina, como dizia Glauco Mattoso), que chegue, toque e atinja todas as camadas da vida: poesia-vida. Reproduzo abaixo os poemas: "Poema negativo" (primeiro poema do livro) e "Tortura".

Poema negativo
Régis Bonvicino, 2013

Um poema negativo é o que se paga bônus
Sem vender livros
Respira por aparelhos críticos
Abusa da base aliada
De dia todos os gatos são pardos
O poema negativo denuncia a barbárie
Um poema negativo
Se ajusta bem ao vago
É o próprio statu quo
O poema negativo tem dobras de veludo,
Asas plissadas
E pele de cobra
Um poema negativo se masturba
Sob o sol nas dunas
O poema negativo vasculha a favela
Com os cães de Le spleen de Paris
De Charles Baudelaire
Um poema negativo
Desvia bens do lixo
É a máquina amiga
É a farsa, bem paga, do atrito.

_______________________


Tortura
Régis Bonvicino, 2013
Poesia é atraso de vida
É o maior desserviço
É masoquismo
É a cela vaga de um presídio

No máximo um dever de escola
Camões
É um belo de um castigo
Um livro de poemas

É papel jogado no lixo
Basta um verso denso de Pessoa,
Para citar num artigo,
Um verso doce de Vinícius,

Útil para dizer no ouvido,
Não chega aos pés
De uma letra realista de Chico
A verdade poesia

É um show de um ex-beatle
A poesia
Dá nojo em barata
É suplício.

____________________


O poema negativo, que mais parece uma homenagem àquele poema porrada de Roberto Piva ("Eu estou farto de muita coisa / [...] Eu quero a destruição de tudo que é frágil" - In: Paranóia: Obras Reunídas , vol 1, Editora Globo, 2005), denuncia a barbárie (diária em nosso cotidiano) e da própria ruína da barbárie que nasce o poema (porrada) negativo: nasce por inconformação. Por isso (veja a ironia maior disto) "respira por aparelhos críticos": está em falta, diante de tanta barbárie em nosso cotidiano, o poema-porrada-negativo. Está em falta esse poema-farsa, que é atrito. Está em falta esse poema que é por si herdeiro daquele poema de Carlos Drummond de Andrade, "A Flor e a Náusea" (in: A Rosa do Povo, Editora Record, 2000, p. 15) que diz:


"Posso, sem armas, revoltar-me? [...] 
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera 
O tempo pobre, o poeta pobre / fundem-se no mesmo impasse"

Certamente que o poema de Drummond ainda nos é atual, no sendito de: vivermos em um tempo pobre, de maus poemas. Por isso o poema-porrada-negativo, que nos fala Régis, caduca em seus aparelhos. E por tempo pobre e de maus poemas quero dizer: um tempo (século XXI --não sou especialista nem leio muitos poetas "atuais", mas com base no pouco que leio de poetas deste século) em que muito pouco se faz revoltas sem armas, como diz o poema do Drummond -- a velha luta com as palavras, a luta com metralhadoras, em que as palavras parecem cápsulas, para lembrar de Sartre, em Que é  a literatura? (Editora Ática, 2004); um tempo em que a poesia acomodou-se à fruição de puro sentimento.

Em tempos de crise, em tempos de fabricação de uma literatura "satisfeita e sem angústia", para lembrarmos uma antológica observação de Antonio Candido (in: Literatura e Sociedade, 2006, p. 120), e se quisermos lembrar, de longe, o velho filósofo Blaise Pascal em seu Pensamentos (2005, Editora Martins Fontes) ao usar a imagem de um rei distraído para falar do divertimento, do entretenimento e das distrações da vida que nos ocupam (cf. os Fragmentos 136, 137 e 139), a poesia assume, ironicamente bem colocado no poema do Régis, o lugar da tortura: "atraso de vida".

Pensando nestes poemas do Régis, em Roberto Piva, em Drummond (com quem dialoga), no negativo que isso instaura (talvez eu esteja mesmo pensando naquele negativo --apofático-- que tão bem vemos na pintura de um Mark Rothko),  na tortura (pensando mesmo numa duplicidade da ideia de tortura), nas barbáries e distrações (tantas) que cotidianamente somos bombardeados e empurrados, onde fica a poesia? Fica? Agora, aqui, me despedindo deste texto, deste ano, destas linhas, estou pensando em Maurice Blanchot: que a poesia sempre nasça e se erga das ruínas.




§

Rodrigo Araujo. 

  • Share:

You Might Also Like

0 comentários