#38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo: notas sobre alguns filmes

By rodrigo araujo - novembro 18, 2014



Nuits Blanches sur la Jetée (2014), “Noites Brancas no Píer”, de Paul Vecchiali.
 
Um filme bastante peculiar exibido na 38ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo (que, aliás, deve seu sucesso a alguns bons filmes do cinema latino-americano lançados na Mostra) é certamente o francês Nuits Blanches sur la Jetée (2014), “Noites Brancas no Píer”, de Paul Vecchiali, tradução de um conto do escritor russo Fiodor Dostoievski. Preciso começar esta breve nota do filme de Vecchiali com a recepção do filme, ligada, de certo modo, com a minha escolha pelo termo “tradução”, e não adaptação ou releitura. Estranhamente este filme teve uma recepção negativa por parte de algumas pessoas. Uma rápida pesquisa na web foi suficiente para me deparar com alguns sites em que seus autores sublinham a superficialidade, o caráter raso na proposta de encenação do filme e, alguns comentários mais ousados como pode ser visto na página do filme na rede social Filmow, sublinhando a “tentativa de filme” nesta nova empreitada de Vecchiali. Para sermos breves, basta observar a reação negativa neste e neste blog. Mas também elogios neste e neste blog. O leitor poderá, por si só, encontrar tantos outros sites pela web sobre a recepção deste filme. De forma preambular, ou uma pré-nota, sublinho dois comentários, cruciais para que meu comentário sobre este filme tenha valor e posição: (1) Quanto à parte técnica do filme, o filme enquanto estrutura, há uma predominância do diálogo, do texto dostoievskiano, além de um traço teatral, com danças, falas quase-declamadas. Não abordarei a parte técnica do filme, nem seu mise-en-scène. E o leitor neste blog poderá constatar que minhas notas cinematográficas pouco se detêm a uma análise estrutural do filme enquanto tal para não caírem em comentários de senso-comum. O que me interessa, não que este argumento ignore o primeiro, é o filme enquanto criação e exegese; o que me interessa é a recepção do filme; o que me interessa é o cinema aberto em seu poder-dialogar com outros campos, como literatura, filosofia. O que me impressiona, diga-se en passant, é ver uma gama de seres chamados “cinéfilos”, alunos e pessoas ligadas ao cinema propriamente dito, fechados à própria abertura do cinema para o diálogo. Pessoas que se fecham à obra enquanto estrutura – aquilo que em literatura o estruturalismo tão marcou e continua marcando: a tomada da obra enquanto estrutura ela mesma, uma casa fechada para o mundo, para o social etc. (2) Por que opto por tradução, isto é, o filme como tradução de um texto literário? É no plano da semiose que escolho a tradução de um signo para outro. Octavio Paz já dizia que toda tradução é irmã gêmea da criação, o que o ensaísta mexicano chamou de transmutação – para isso, pode-se consultar o livro Tradução intersemiótica (2003, Editora Perspectiva), de Julio Plaza. Para o cinema e a literatura, muito melhor que seguir Octavio Paz é mesmo seguir o poeta, tradutor e ensaísta Haroldo de Campos, que nos lega a concepção de tradução como transcriação. Uma nova obra, portanto. Não quero ir além deste ajuste de contas. Apenas ir contra o movimento de algumas pessoas que insistem em querer um cinema enquanto “adaptação fiel” do livro, e por isso passam a abrir temíveis tribunais para desmerecer a obra que foge a essa fidelidade - Se é para montar um tribunal contra uma adaptação livre e própria, esteticamente falando, vamos julgar Sokurov, Shinoda e tantos outros grandes. É seguindo Haroldo de Campos e sua ideia de transcriação que vejo este filme de Vecchiali como uma tradução bastante particular e própria. E argumentar que este filme “não confere volume ao texto de Dostoievski” é lançar um comentário demasiadamente raso em todas as esferas, da tradução, da estética...

Tradução do conto “Noites Brancas”, de Dostoievski, sem dúvidas Nuits Blanches sur la Jetée é um filme que causa grande comoção em seu espectador pela sua sensibilidade e pela sua poeticidade. O que pode parecer cru, verbal demais ou seco demais, nada mais é que um disfarce para o que está por traz. O filme mergulha fundo nos temas da ausência, da solidão e do sonho. Um personagem, Fiodor (no romance de Dostoievski é chamado de Sonhador), dedica suas noites a vagar por um píer até que encontra uma mulher, e juntos passam as noites em infindáveis devaneios sobre a existência e a solidão. Ele espera por algo, algo que preencha sua solidão, seu vazio existencial. Ela espera por um homem, um amado, que ainda não chega. E juntos encontram-se afinados: pela solidão. Ora, não é estranho afirmar que o filme estreita os laços com o Romantismo e com aquilo que os poetas românticos do séc. XIX tanto perseguiam: o sonho, a vida como um sonho, ou o sonho como única possibilidade, já que a vida é insuficiente. Um sonho que flerta o delírio. Sonho - para lembrar o ontológico personagem sonolento e delirante de Georges Perec - que só "é" na noite, na solidão essencial da noite. Mais ou menos aquilo que o ensaísta francês Maurice Blanchot fala, em O espaço literário (2011, Editora Rocco), sobre o sono como o transformador da noite em possibilidade (p. 290) e como "intimidade essencial com o centro" (p. 291); logo, o sonho, para Blanchot, é o “despertar do interminável” (p. 293). Estas palavras de Blanchot, inicialmente, parecem servir para este filme: quase-teatral, os dois personagens (o sonhador e Nastenka) dialogam dentro da mesma intimidade nocturnal do Igitur de Mallarmé. E o que é mais precioso para o sonhante? O que é mais precioso para os poetas do romantismo? A fagulha da felicidade. A inalcansável felicidade. Relembro dos momentos finais do romance de Dostoievski: "Um minuto inteiro de felicidade! Afinal, não basta isso para encher a vida inteira de um homem?". Relembro também uma frase dita pelo sonhante no filme: "A esperança só ajuda a destruir a nós mesmos". 

Se pegarmos a obra O simbolismo (2007, Ed. Perspectiva), da Anna Balakian, poderemos ver como os poetas simbolistas do fin de siècle não meramente fugiam do mundo, mas buscavam isolar-se do mundo (pode-se consultar as páginas: 91-126). Uma ótima definição da Balakian do momento simbolista francês é quando ela sublinha a “consciência do vazio em que o homem navega cegamente” (Balakian, 2007, p. 91). Mas é no próprio centro do Romantismo, por si já um conceito vago e indefinido dentro da história da literatura, como sugere Otto M. Carpeaux em seu ensaio “Prosa e ficção do romantismo”, desde o início do século XIX na Alemanha até seu declínio em 1848, que encontramos solo fértil para a compreensão deste filme, quer dizer, compreensão daquilo que ele traduz. Não nos cabe aqui tematizar o Romantismo, nem tematizar a poesia romântica, mas nos interessa como o poeta romântico tematizou a insatisfação com o mundo e o descontentamento com a sociedade; nos interessa muito como o homem, para o Romantismo, era uma espécie de “sonâmbulo inconsciente”, como nos diz o crítico literário e filósofo Benedito Nunes, em seu ensaio “A visão romântica”. E vai nos interessar mais ainda um fragmento do poeta Novalis, segundo Otto M. Carpeaux em seu grandioso História da literatura ocidental, volume 6 “O Romantismo”, “o poeta mais profundo entre todos os românticos” (Carpeaux, 2012, p. 37): “O que está fora de mim está justamente em mim, é meu – e inversamente”. Ora, este “inversamente” que está em mim é a subjetividade radicalmente derramada: a realidade está muito mais para o imaginário, quer dizer, “... inversamente...”. É então que o personagem solitário Fiodor está-no-mundo: descontente, percorrendo o vazio existêncial, inversamente... A ponto de ficar, para o espectador, uma grande interrogação ao término do filme: seria tudo aquilo mero delírio de Fiodor? Nada mais romântico, no sentido mesmo de compreensão do Romantismo como um movimento de poetas entusiasmados pelo irracional e pelo inconsciente (pode-se conferir o ensaio “Filosofia do romantismo”, de Gerd Bornheim).

Só posso concluir esta breve nota acerca de Nuits Blanches sur la Jetée com a plena convicção: um dos melhores textos (de Dostoievski) para se compreender a poesia do séc. XIX, a solidão existencial e o lugar destes poetas no mundo. E um filme bastante particular em seu modo de tradução. Este conto, sabe-se, foi levado ao teatro e também traduzido pelo cineasta italiano Luchino Visconti. Fica uma excelente recomendação, para os que não viram e também para os que viram, quem sabe lançar outros olhares.
 
Nuits Blanches sur la Jetée

Nuits Blanches sur la Jetée



Jauja (2014), de Lisandro Alonso.

Aclamado em Cannes, Jauja tem co-produção de 8 países e uma das coisas mais enigmáticas que me deparei nos filmes vistos na 38ª Mostra. Surpreendeu-me este filme do argentino Alonso por ser uma grande metáfora. Sim. O filme pareceu-me funcionar como uma grande metáfora sobre o buscar. A mesma disposição de "grande metáfora" que Himiko (1974), do Masahiro Shinoda, traz ao terminar o filme. Um filme muito difícil. Silencioso. Difícil de atravessar como é difícil de atravessar o sertão, aquele sertão de Guimarães Rosa, só para clarificar o exemplo. Dificuldade, inclusive, percebida em algumas pessoas que saíram da exibição, devido a sua longa duração, o que alguns dirão: “sua falta de ritmo”. Ao escrever este brevíssimo comentário, lembrei-me de um pequeno trecho do poema “Reflexão e Convite”, de Murilo Mendes, que tem a ver com esta "busca" do filme: 

"Nós todos estamos na beira da agonia
caminhando sobre pedras angulosas e abismos". 

Essa é a busca do humano que o filme toca "em estado de arte": uma busca sobre pedras angulosas e (muitos) abismos. O mote da busca deflagrada pelo protagonista: o rapto de sua jovem filha, em meio ao deserto da patagônia (mais um filme em que o tempo da narrativa é o século XIX). Se o filme mais parece um Western norte-americano, como podemos conferir nesta crítica da Revista Cinética, ele vai mais além devido a uma busca de grande dimensão ontológica, aliada a belíssimas imagens poéticas. Se o filme pode soar como “estranho”, como podemos conferir no comentário deste blog, é justamente pelo intimismo da busca. Algo mesmo tarkovskiano: a busca pela zona, pelo quarto escondido em meio a radiações. A busca pela essência, ou como diz um personagem do conto “Cara-de-Bronze” do Corpo de Baile, de Guimarães Rosa, a busca pelo ‘quem’ das coisas. Sem dúvidas, um filme grandioso.

 
Jauja

Jauja



Japão

Uma das novidades da 38ª Mostra foi tomar-se conhecimento com um cineasta até então desconhecido do público brasileiro, a saber: Noboru Nakamura. Estranho, pois não há nada sobre ele no livro-enciclopédia de cinema japonês da Maria Novielli, muito menos pela internet. Fora o obscurantismo, pude conhecer um diretor genial. Daqueles que deixa aquela vontade de querer ver mais filmes. Dos 3 filmes que foram exibidos na Mostra, Paixão Mórbida (1964), Lar doce Lar (1951) e Quando a chuva cai (1957), os que mais me chamaram a atenção foram este último e o primeiro. Esses dois filmes têm um traço muito interessante: mulheres em um papel um tanto transgressor. Lar doce lar também é um filme bastante interessante por tratar de uma jovem, Tomoko, que deseja ser uma pintora reconhecida e, por dedicação e amor à arte, seguirá seu caminho na arte e logo cedo experienciará as agruras da vida, chegando até a vender seus quadros na rua, onde é humilhada e até agredida. O fino trato com que Noboru Nakamura dá ao lugar da mulher é certamente nuclear em seu cinema. O que não se sabe é se este cineasta continuará no obscurantismo em terras brasileiras.

Não obstante, em matéria de terras nipônicas, o ponto alto foi certamente A pequena casa (2014), de Yôji Yamada. Um filme belo, sensível, e bastante completo ao abordar a matéria histórica pré e pós 2ª Guerra Mundial no Japão a partir da perspectiva da empregada Taki e das eventuais discussões com seu sobrinho Takeshi. Posso dizer que este filme vai mais além (e de maneira mais sutil, no abordar dos elementos históricos) dos filmes do Keisuke Kinoshita, diretamente O rio fuefuke (1960) e indiretamente em 24 olhos (1954). É simplesmente maravilhoso o diálogo que gira em torno da relação história e sociedade entre tia e sobrinho, quando aquela está escrevendo suas memórias (a boa e velha relação entre memória e história). Aprende-se muito com este filme, tanto em termos históricos quanto em termos poéticos. Não pela quantidade de informações sobre o momento histórico em que se encontrava o Japão no período de guerras, (e muito menos faz deste filme um filme esquemático), mas pela história contada a partir dos de baixo, no caso, uma empregada de família nobre, que presenciou as transformações do país naquela pequena casa. Parafraseando Clarice Lispector, descobri o mundo com este filme. Ou suas sutilezas, ainda presentes mesmo em tempos de crise -- e como o cinema japonês nos ensina sobre as sutilezas em tempos de ruínas...

A pequena casa

A pequena casa




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Rodrigo Araujo.

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