Kon Ichikawa, ainda... Solidão, existência e morte

By rodrigo araujo - setembro 24, 2014

Com Harpa da Birmânia e Fogo na Planície podemos ver personagens em plena queda livre, ou em pleno mergulho no sofrimento existencial: Mizushima, mesmo movido por grande esperança, mergulha na tristeza do ser; Tamura, mesmo resistindo ao canibalismo, mergulha no que há de mais podre na existência. Percebe-se o interesse de Kon Ichikawa, neste momento, por personagens que reflexionam aquilo que o filósofo Blaise Pascal insistiu em seu pensamento, em pleno racionalismo cartesiano do século XVII, que é o estar diante da fragilidade das coisas e da miséria humana. Penso que Mizushima, o harpista, seja o personagem que melhor compreendeu que a grandeza do homem é re-conhecer sua miserabilidade, como nos diz Pascal no belíssimo Fragmento 114 de sua obra Pensamentos (2005, Ed. Martins Fontes): “A grandeza do homem é grande por ele conhecer-se miserável”. Não parece distante daquela “primeira grande verdade” (Dukka) que ensinou Buda no budismo primitivo: que nascer já é sofrer e é preciso que homem reconheça isto. Claro, aqui são apenas aproximações, diálogos. Principalmente no que concerne à filosofia de Pascal, cujo pensamento põe em seu centro a religião, nas malhas da relação do homem com a transcendência.

Não obstante, é com dois filmes que partem de obras literárias, Coração (1955) e O Templo do Pavilhão Dourado (1958), que Kon Ichikawa celebra seu interesse por personagens profundamente marcados por um isolamento no mundo. Com esses dois filmes, mais um terceiro, também baseado em uma obra literária, A Chave/Estranha Obsessão (1959), falaremos nestas breves notas de isolamento, existência, margens e o que resulta disto, temas que Kon Ichikawa perseguirá com extremo brilhantismo.


Coração

Pode-se dizer que Coração [Kokoro] é uma obra sintomática na cinematografia de Ichikawa por apresentar dois personagens interessantíssimos e até complementares: primeiro, o senhor Nobuchi (ou Sensei), homem cerrado em si; a primeira parte do filme nos apresenta a incapacidade de Nobuchi de se relacionar com o mundo a sua volta, inclusive com sua esposa, mantendo um relacionamento quase em estado de mudez. O silêncio e a rotina do casal são alterados com o surgimento de um estudante, Hioki, que vê em Nobuchi um símbolo de inspiração e admiração, o que leva o estudante a tentar uma aproximação e amizade com Sensei.  Nobuchi carrega uma tristeza do Ser que aos poucos vai tornando-se clara --- experiências negativas no passado de Nobuchi o levaram a seu cerramento de si.

O segundo personagem que destacamos consolida-se na segunda parte do filme, que são as memórias de Nobuchi e, como diz um poema de Torquato Neto, “a explicação do fato” do porquê de sua melancolia, de tanta tristeza do ser: seu primeiro e único amigo, Kaji, que foi o símbolo de inspiração e admiração de Nobuchi. Com o desenrolar da narrativa, Kaji segue para um caminho tal qual o Buda histórico, no século VI a.C., fez aos 29 anos, abandonar todas as doçuras da vida (renúncia) e buscar a iluminação (recomendo a descrição do budismo primitivo e a trajetória de Buda no “caminho do meio” no livro “O Buda e o Budismo”, do francês Maurice Percheron, Editora Agir, 1958). Mas Kaji se vê em um dilema que perturba seu caminho ascético: Kaji se vê apaixonado por Shizu, filha da dona da pensão onde ele e Nobuchi dividem um quarto. O desejo velado por Shizu passa a causar um grande sofrimento em Kaji. Ora, o desejo, nos ensinamentos budistas, é a primeira causa da dor; e a segunda causa da dor é a falta do domínio de si. O desejo impede a disciplina da mente e o caminho para a libertação. Diante de Shizu, Kaji se vê incapaz do desprendimento --- Uma fala do Buda diz respeito a isso: “Abandonar todas as paixões, liberar-se, eis a nobre verdade para a cessação do Dukka (sofrimento)” (In: “Introdução ao Budismo”, do francês Jacques Martin. Edição francesa, Editora Édition du Cerf, 1989). Parêntesis à guisa de concluir: nos livros de pesquisadores franceses, ainda sem tradução para o português, como Jacques Martin, ou Paul Magnin, bem como em livros sobre o budismo em língua portuguesa, como é de boa e recomendada leitura os livros de Percheron e Richard Gaard, pode-se ter acesso a um debate mais detalhado dos ensinamentos desta “religião-doutrina” que vai muito além de uma mera disciplina ao nirvana, mas que tem muito a nos ensinar e que por força do tempo não podemos debater aqui.

Em conflito consigo mesmo, a saída que Kaji encontra é suicidar-se. Sua morte encerra o plano das lembranças de Nobuchi e caminha para uma terceira parte do filme que poderia chamá-la de plano da suspensão. A morte de Kaji afeta Nobuchi de forma decisiva. A tristeza e o consequente isolamento de Sensei não podem ser reduzidos a um mero psicologismo “traumático”. Muito menos podemos dizer que sua melancolia é um “estado de alma” pós-morte de Kaji. A melancolia que Nobuchi é muito mais uma tonalidade afetiva despertada. No sentido mesmo empregado por Heidegger, em Os conceitos fundamentais da metafísica, onde o filósofo alemão nos diz que todo ser tem suas tonalidades afetivas (tristeza, melancolia, ira etc.) adormecidas, mas que podem despertá-las. E despertá-las é, diz Heidegger: deixar o ser-aí como ele é ou como ele, enquanto ser-aí, pode ser. (Heidegger, “Os conceitos fundamentais da metafísica”, Editora Forense Universitária, 2011).  Quer dizer, essas tonalidades afetivas são o como de nosso ser, são essenciais, e o seu despertar (no curioso Parágrafo 19 deste livro, Heidegger nos exemplifica com o despertar da tonalidade afetiva tédio) libera o ser próprio. Logo, Kaji é a mola, a propulsão para Nobuchi despertar suas tonalidades afetivas próprias e essenciais até então adormecidas. Esse despertar fará com que Nobuchi siga os passos de Kaji no horizonte da existência, os passos da morte. É então que o sensei deixará seu testemunho para o estudante Hioki, contando todo seu passado, suas lágrimas e suas escolhas. Interessante como Kon Ichikawa dá um certo privilégio ao testemunho e à memória pelos seus personagens. Assim como em Harpa da Birmânia Mizushima deixa seu testemunho narrando suas escolhas, Nobuchi também deixará as suas memórias.

O que se pode concluir deste antológico filme é que o resultado do isolamento dos personagens Kaji e Nobuchi é a morte. A morte não só será decisiva neste filme, como também será decisiva no próximo filme destas notas, “O Templo do Pavilhão Dourado”, adaptação do romance homônimo de Yukio Mishima. A morte será, então, um fio condutor que atravessa esses dois filmes e, de certo modo, também o terceiro, “A Chave/Estranha Obsessão”.

Minha tese é que "Coração" (1955) é um filme embrionário de uma matéria existencial que Ichikawa consolidará nos filmes seguintes, "Harpa da Birmânia" (1956) e "O Templo do Pavilhão Dourado" (1958), filmes que giram em torno da existência, solidão e morte. Ou, parafraseando o semiólogo e crítico literário Roland Barthes, o filme é uma preparação para algo a ser materializado, uma anotação: passagem para...


O Pavilhão Dourado

Kon Ichikawa assume a missão de adaptar um romance extremamente rico e intimista, “O templo do pavilhão dourado” (Editora Rocco, 1988) de um grande escritor nipônico, Yukio Mishima, talvez o que mais tenha se tornado conhecido no Ocidente – no Brasil, o poeta curitibano Paulo Leminski foi responsável por trazer Mishima para nosso idioma, traduzindo um romance seu e dedicando ensaios a este peculiar escritor-samurai. Um romance bastante intimista, pois traz um personagem digo de comparação com um personagem de Clarice Lispector, Macabéa, em matéria de sofrimento existencial.  O resultado é que Ichikawa vai mais além, a respeito de adaptação deste romance do Mishima, do que Paul Schrader, que adapta uma seleta de cenas de quatro romances de Mishima em “Mishima: uma vida em quatro capítulos” (1985).

O templo do pavilhão dourado”, adaptação que podemos dizer que se mantém fiel ao texto, narra o drama de Mizoguchi, um personagem extremamente apocalíptico e descontente com a realidade. Na infância, sempre ouvira do pai sobre o Templo Dourado, um monastério, como uma espécie de paraíso, isto é, a ideia de Mizoguchi é a do Templo como o lugar do belo e do sublime. Mizoguchi tem uma deficiência que o faz afastar-se do mundo, quer dizer, deslocar-se do mundo, estar à margem do mundo: ser gago. Sua gagueira representa não só a dicotomia feio-belo como apresenta a atmosfera da monstruosidade que é sua vida já desde a infância. Convém notar que o belo, para o protagonista, é o mundo exterior e o Templo Dourado. O Templo é, então, um muro que separa Mizoguchi da vida. O nosso protagonista então, começa a elaborar a sua arquitetura da destruição: destruir o Templo para poder viver, já que viver e destruir eram a mesma coisa para Mizoguchi.  Mizoguchi busca plotinianamente a Beleza suprema da vida, já que lhe falta o belo na vida. A vida constitui-se incompleta se não houver a busca do belo, como nos fala a filosofia antiga grego-pagã do alexandrino Plotino em seus tratados das Enéadas. Buscar o belo é um ofício da Alma para encher-se de virtude e retornar àquilo que é a unidade primeira geradora de todas as coisas, o Uno, o Bem supremo, o Absoluto. Essa é a busca do protagonista, um sentido, um significado da vida pelas trilhas da beleza. Portanto, a tese de Mizoguchi é destruir seu ideal de beleza (Templo) para alcançar a vida.

 
Em um outro texto, publicado em uma revista de Letras da Universidade Estadual de Ponta Grossa, eu faço uma leitura mais detalhada acerca do romance adaptado, e não cabe aqui retomá-lo e aprofundar o tópico.  Mizoguchi e Nobuchi, unidos no isolamento, chegam ao mesmo resultado: a morte como resultado de um estar-isolado-do-mundo. Em meu artigo sobre o romance de Mishima, faço algumas considerações sobre o destino de Mizoguchi depois que ele incendeia o Templo, já que o romance é escrito em forma de diário (Mizoguchi quem narra em primeira pessoa, de forma autodiegética) e após o incêndio Mizoguchi termina o livro com uma frase: “Eu queria viver”.  Portanto, eu argumento que esta frase sugere um possível suicídio do protagonista. E o filme de Ichikawa segue esse pensamento, ao dar um final apocalíptico, semelhante a “Coração”: a morte como resultado. Eu queria viver quer dizer: a beleza é a chave que falta para abrir a porta do mundo, entrar-no-mundo. Beleza, ruína e morte. A porta está aberta. Um trecho de um poema de Hölderlin, grande poeta alemão e grande admiração do filósofo Heidegger, pode funcionar como epígrafe tanto para o filme de Ichikawa quanto para o romance de Mishima:

 

"Largamente muerto y replegado en sí mismo
Mi corazón saluda la belleza del mundo
[...] 
¡Oh, yo volveré a vivir!"
Hölderlin, poema "Diótima"(1795-1798), in: Hölderlin: Poesía Completa. Editora Ediciones 29, Madrid, 1977, p. 57.



A Chave

Se “O templo do pavilhão dourado” é, digamos, uma adaptação o mais fiel enquanto pode do texto de Mishima, “A Chave” [Kagi], também traduzido por “Estranha Obsessão”, desvia, segundo a pesquisadora Maria Novielli em seu “História do Cinema Japonês”, de sua habitual “tradução fiel”. Segundo Novielli, o final que Ichikawa dá a este filme difere do romance adaptado, de autoria de Junichiro Tanizaki. Como não conheço o texto de Tanizaki, quero destacar algumas partes do filme que julgo serem decisivas, conferindo-lhe um lugar de destaque na cinematografia de Ichikawa.

“A Chave” nos conta a vida do velho Kenmochi, casado com sua jovem esposa Ikuko. O peso do tempo e da idade faz com que Kenmochi recorra a drogas para manter-se na virilidade. A princípio, o filme funciona como uma maravilhosa crítica à geração cosmética que passamos no século XXI, uma critica a juventude cada vez mais perseguidora da beleza e virilidade. Kenmochi seria, então, o traço de uma juventude escrava da própria juventude. Mas no decorrer do filme, a “estranha obsessão” de Kenmochi passa a ficar nítida: o velho protagonista cria um jogo que envolve sua esposa e o namorado de sua filha, Kimura. A intenção de Kenmochi é fazer com que Kimura tenha algum “flerte” com sua esposa e assim poder embebecer-se do ciúme. Para Kenmochi, o ciúme poderia ser usado para despertar o desejo, alcançando a tão desejada virilidade. Quer dizer: fazer o ciúme de estimulante.

O que Kenmochi não esperava é que todos os personagens do filme, sua esposa, sua filha e seu namorado, também participassem desse jogo, repleto de erotismo. Aliás, o erotismo que este filme põe em relevo chega a lembrar da erótica trilogia budista de Akio Jissoji, já abordada aqui. A grande viravolta do filme é a observação de todo o jogo feita pela empregada da casa, que envenena a todos. Ao confessar o crime no final do filme, ninguém lhe dá ouvidos, porque a empregada é daltônica e tem dificuldade em associar as coisas. Por isso, as autoridades não levam a sério a confissão da empregada e a morte dos personagens acaba sendo divulgada como “suicídio”. Muito interessante porque faz lembrar dos narradores bêbados do escritor mineiro Guimarães Rosa, nos contos de Tutameia, seu último livro; embriagados, os narradores conduzem as tramas e relatam os fatos, à medida que o leitor se pergunta: até que ponto posso confiar neste narrador? O primeiro conto deste livro, “Antiperipleia”, de título por si curioso, é sobre a morte do cego Seô Tomé e o narrador do conto é o seu guia, Prudencinhano, que é bêbado e conta como o cego Tomé caiu do barranco. Mas por ter inveja do sucesso que o cego tinha com as mulheres, e ele não, o leitor fica na dúvida: até que ponto podemos confiar na versão do narrador, já que, além de bêbado, tinha inveja do cego? Claro, o narrador apresenta sua defesa de não ter nada a ver com a morte de Seô Tomé, até porque o narrador estava bêbado na hora do fato: “Se na hora eu estava embriagado, bêbado, quando ele se despencou, que é que sei?” (Guimarães Rosa, Tutameia, conto “Antiperipleia”, 1967). Assim, também é válida a pergunta pela confiabilidade da empregada. Até que ponto pode-se confiar nesta personagem?

Um filme que, sem dúvidas, deve ter seu lugar de destaque na cinematografia de Ichikawa pelo jogo em que o espectador também participa – um jogo que a literatura tão bem domina, em trazer o leitor para as teias e vazios do texto a serem preenchidos, como diz toda a estética da recepção, de Iser a Jauss. Ademais, o engano criado pela empregada sublinha o caráter envolvente e dinâmico do filme – uma vez que o engano é característico do cômico, como diz a pesquisadora do cômico em Guimarães Rosa Jacqueline Ramos, em “Comicidade em Tutameia”. Concluímos que Ichikawa se mostra, assim, um cineasta elástico e inteiramente interessado na questão da existência.  Com a mesma intensidade que Bergman mergulhou na psique dos seus personagens, num mergulho bastante psicológico, Ichikawa mergulha na existência, ou como diz Cioran, “nas raízes da vida”. Por isso seu interesse e perseguição por temas como solidão, sofrimento, renúncia, sacrifício e morte, que dominaram estas notas sobre o cineasta. Se Ichikawa faz, nos passos de Cioran, um ataque às raízes últimas da vida, problematizando-a, é o espectador de sua obra que percorrerá estas ruínas para poder, ou não, criar.  Destruir para criar.


Nobuchi (Sensei), in: "Coração"

Kaji, in: "Coração"

Mizoguchi, in: "O templo do pavilhão dourado"

"O templo do pavilhão dourado"

"O templo do pavilhão dourado"

"A chave"

"A chave"


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Rodrigo Araujo.

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