Para que nasça um poema: algumas notas sobre o poeta japonês Tamura Ryûichi

By rodrigo araujo - setembro 14, 2014

Apresento, abaixo, uma tradução literal minha de um belíssimo poema do poeta japonês Tamura Ryûichi. Traduzo do francês o poema “Quatro mil dias e noites”, de 1956, que consta em uma edição francesa que reúne principais poemas de poetas japoneses do século XX, “Anthologie de poésie japonaise contemporaine” (Paris, Editora Gallimard, 1986). 

Quatro mil dias e noites
Quatre Mille jours et nuits
[Yonsen No Hi To Yoru]

Para que nasça um poema,
É preciso matar,
É preciso matar muitas coisas
Que amamos,
Assassiná-las, envenená-las.

Veja!
No céu de quatro mil dias e noites
Por desejar a língua trêmula de um pássaro
O matamos
Sobre o silêncio de quatro mil noites
E sobre o resplendor de quatro mil dias.

Ouça!
Em todas as cidades e em todos os fornos, sobre a chuva,
Em todos os portos e em todas as minas no solstício de verão,
Pela necessidade de arrancar lágrimas de uma criança faminta
Nós assassinamos
O amor de quatro mil noites
E a piedade de quatro mil dias.

Lembre-se!
Por tão somente desejar o medo de um cão perdido
Que vê o que nossos olhos não veem
Que escuta o que nossos ouvidos não escutam
Nós envenenamos
A imaginação de quatro mil noites
E as lembranças frias de quatro mil dias.

Para criar um poema
Devemos aniquilar aquilo que nos é especial.
É o único caminho para ressuscitar os mortos
É o caminho que precisamos seguir.
(Tradução do original para o francês por Yves-Marie Allioux, In: Anthologie de poésie japonaise contemporaine, 1986, p. 171-172. Tradução para o português por Rodrigo Araujo).


Sabe-se muitíssimo pouco deste poeta. O que temos conhecimento é que Tamura (1923-1998) ingressou logo cedo na marinha, e após a perda do Japão na Segunda Guerra Mundial fez parte de um grupo de jovens poetas chamado Arechi, todos eles interessados em discutir a modernidade no Japão (a poesia não mais cantava a natureza e seus fenômenos como fazia a tradicional poesia desde o século XVI com o haikai). Neste grupo, destacou-se entre os demais ao apresentar uma poesia cheia de elementos violentos e destruidores, que viria ser um traço forte da poesia dos anos 40 do século XX no pós-guerra. Sua obra de estreia é a antologia poética Yonsen no hi to yoru em 1956. Autor de uma vasta produção, Tamura Ryûichi morre em 1998, vítima de câncer.

Já na primeira estrofe do poema pode-se perceber o sentimento de violência e destruição que se alastrou pelos anos 40 no país: matar – segue por todo poema um sentimento de aniquilação: assassinar e envenenar, sintomáticos em períodos de guerra. Aliás, a literatura e o cinema no Japão levaram ao limite o sentimento de vida nua e vida crua de um país vencido: um Yukio Mishima, com personagens incapazes de transformar o real, à beira do niilismo; o cinema de Kinoshita e mais ainda o de Kon Ichikawa, este o melhor exemplo que temos em matéria de efeitos da guerra. O poema de Tamura Ryûichi é, assim, provocativo: para que nasça o poema, é preciso matar e pôr tudo por terra. Quer dizer: estamos longe daquela inspiração drummondiana, estamos longe daquele poema que é mero cantar das dores daquele que o escreve, sem a força da universalidade (o próprio Drummond já deixava o aviso em “Procura da Poesia”: Não me reveles teus sentimentos... isso ainda não é poesia). Estamos mais longe ainda daquele poema que nasce das Musas, tão cultuado pelos gregos antigos; não é o poeta que escreve, mas o poeta divinizado que, ao perder o senso, recebe a Musa, que fala por ele (no diálogo Íon, de Platão, temos esse exemplo de inspiração poética e téchne). É preciso destruir tudo isso para que nasça o poema. Logo, o poeta, nos passos de Tamura, não é um tipo inspirado, mas está muito perto da antológica definição de poeta feita pelo modernista brasileiro Cassiano Ricardo:

"Quem é o Poeta?
Um homem
Que trabalha o poema
Com o suor de seu rosto
Um homem
Que tem fome
Como qualquer outro
Homem"
(Cassiano Ricardo, “Poética”, in: Jeremias Sem-Chorar, Editora José Olympio, 1968).


Se extrairmos os versos da 3ª e 4ª estrofes do poema do Tamura, “... necessidade de arrancar lágrimas...” e “lembranças frias”, podemos dizer que o poema (todo poema) é feito de insatisfação, inconformação (do real), renúncia (aniquilar o outro/algo também é renunciar a...) e lágrimas. Para que nasça o poema, é preciso inconformar-se com o projeto que a realidade lhe oferece. É preciso não estar adequado ou encaixado nesse projeto. É preciso dizer não quando lhe exigem o sim. É preciso tomar o rumo contrário da estrada. É como diz o poema “Sargaços”, do Waly Salomão (In: “Lábia”, 1998): “Criar é não se adequar à vida como ela é”. Mas não é meramente fugir da realidade --- nesse ponto, concordo com o crítico literário João Alexandre Barbosa, em “A Biblioteca Imaginária” (Editora Ateliê, 1996), a literatura pode ser fuga da realidade, mas não só. É encará-la de frente.

Para que nasça o poema, é preciso destruir, mas também destruir-se. É preciso, também, aniquilar-se. Como diz um belo poema do Paulo Leminski: “Apagar-me/ Diluir-me/ Desmanchar-me” (In: Caprichos e Relaxos, seção “Não fosse isso e era menos...”, Editora Brasiliense, 1983). Diluir-se por inteiro no vazio da página em branco. Essa entrega por inteiro que sugere o poema de Tamura é algo nuclear, por exemplo, na crítica literária do ensaísta francês Maurice Blanchot, que, em sua obra O Espaço Literário (Editora Rocco, 2011), nos diz que "escrever é entregar-se ao interminável". A obra só se faz obra quando o autor renuncia a tudo pela obra. Cito Blanchot em um trecho elucidativo: “A obra exige do escritor que ele perca toda a ‘natureza’, todo o caráter, e que, ao deixar de relacionar-se com os outros e consigo mesmo pela decisão que o faz ‘eu’, converta-se no lugar vazio onde se anuncia a afirmação impessoal” (Blanchot, O Espaço Literário, 2011, p. 52). Blanchot ainda nos dá, neste mesmo livro, uma excelente definição de criação literária e que dialoga com o poema de Tamura Ryûichi: “Para escrever um único verso, é necessário ter esgotado a vida” (Blanchot, Idem, p. 91).  

 Para que nasça o poema, é preciso esgotar-se, despedaçar-se, dilacerar-se. Se a vida é sofrimento e crise, então esgotar-se é ir ao fundo que parece não ter fundo. Em um livro bastante interessante e recém-lançado, “O Avesso do Niilismo” (Editora N-1, 2013), do filósofo e deleuziano Peter Pál Pelbart, há uma clara distinção entre esgotamento/cansaço, esgotado/cansado. Cito o Peter Pelbart: “O esgotado é aquele que, tendo esgotado seu objeto, se esgota ele mesmo, de modo que essa dissolução do sujeito corresponde à abolição do mundo”. Já o cansado “tem sua ação comprometida temporariamente, prestes a retomá-la” (Pelbart, “O avesso do niilismo”, 2013, p. 39). O esgotado ultrapassa o cansado rumo a um “sujeito despedaçado”, a uma dissolução do eu. Nas trilhas do filósofo Gilles Deleuze, Peter Pelbart conclui que, cito: “O esgotamento não é um mero cansaço, nem uma renúncia do corpo e da mente, porém, mais radicalmente, é fruto de uma descrença, é operação de desgarramento, consiste num deslocamento --- em relação às alternativas que nos rodeiam, às possibilidades que nos são apresentadas [...]”. Quer dizer, cito novamente Pelbart: “O esgotamento desata aquilo que nos ‘liga’ ao mundo, que nos ‘prende’ a ele e aos outros” (Pelbart, Idem, p. 46). Essas palavras do Peter Pelbart, bem como o próprio propósito de aniquilação do poema de Tamura Ryûichi, parecem mesmo dialogar com uma pintura de Caravaggio, “San Girolamo” (1606), que segue abaixo:



Essa pintura de Caravaggio corporaliza exatamente esse esgotar-se que falamos. Se o poema de Tamura Ryûichi, em sua última e derradeira estrofe, nos avisa que para criar um poema é preciso aniquilar aquilo que nos é especial, sendo este o “caminho que devemos seguir”, talvez a caveira da pintura melhor ilustre esse aniquilamento que fala o poema. Com a duplicidade do aniquilamento: aniquilar o outro e aniquilar-se.  Para tomar a palavra usada por Peter Pelbart, para que nasça o poema é preciso desatar alguns nós para se re-fazerem outros.

A lição que se pode tirar deste poema de Tamura Ryûichi é que, uma vez que matamos e assassinamos para fazer nascer o poema, possamos atingir uma zona (como o Stalker do cineasta russo Andrei Tarkóvsky adentra a Zona) que converge naquilo que o filósofo italiano Giorgio Agamben (em “Image et mémoire”, 1998) fala de des-criação: Se criar é resistir, resistir é “antes de tudo ter a força de des-criar o que existe” (extraído de Peter P. Pelbart, "O avesso do niilismo", 2013, p. 296). Como diz Pelbart,  quando se pode des-criar,  inventar uma saída”, aí, então, nascerá o poema. 


 §

Rodrigo Araujo.

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