Exercícios negativos de Kon Ichikawa

By rodrigo araujo - setembro 19, 2014

O título destas notas já é autoexplicativo. Quer dizer, já aponta para o tipo de leitura que segue. Para o leitor do pensador romeno Emil Cioran, é sabido que “Exercícios negativos” foi o título de rascunho para a primeira obra em língua francesa deste prosador radicado em Paris, o “Breviário de Decomposição” (Précis de décomposition). Nestas notas, meu objetivo é: ler dois filmes dos anos 1950 do Kon Ichikawa guiado pela filosofia de Cioran.

Nascido em 1915, Kon Ichikawa tem uma vasta produção, e em alguns de seus filmes trabalhou conjuntamente com a esposa, Natto Wada. A pesquisadora em cinema japonês, Maria Novielli, tinha tudo para fazer de sua enciclopédia, “História do Cinema Japonês”, uma obra grandiosa, mas suas análises e descrenças em alguns diretores chegam a ser assustadoras em determinados pontos, deixando sua obra bastante mediana em termos de crítica. No tópico dedicado ao Kon Ichikawa, Novielli começa argumentando que até o início dos anos 1960, Ichikawa “dificilmente foi autor de transgressões ou deu espaço a embates morais” (Novielli, “História do Cinema Japonês”, p. 202). Ora, dos dois filmes do Ichikawa que aqui resenho, “A Harpa da Birmânia” (1956) e “Fogo na Planície” (1959), este último é justamente pura transgressão, além de esses dois filmes serem os mais antológicos e, digamos, mais “conhecidos” deste diretor. Dois filmes que tratam dos efeitos da guerra, e por isso mesmo ultrapassam os filmes de Keisuke Kinoshita em matéria de efeitos da guerra, especialmente “O Rio Fuefuke”, que já foi falado aqui.  E o que reúne Kon Ichikawa e Emil Cioran? Justamente dois nomes que perseguiram a ideia de existência. 


Música e Poesia em A Harpa da Birmânia

Harpa da Birmânia é desses filmes que enche o espectador de emoção. O filme começa com: “Vermelhas como sangue são as terras da Birmânia”.  Já na esfera da derrota do Japão, um grupo de soltados japoneses, situados na Birmânia, é liderado por um comandante diplomado em música e que ensina o canto a sua tropa. Diz o narrador, no off, logo no início do filme: “O canto nos ajudava a enfrentar nossos problemas”.  Entre os soltados, o sargento Mizushima é o harpista, que encanta a todos com sua bela habilidade no instrumento. Mas é exigido a Mizushima intervir em outro grupo de soldados japoneses e convencê-los a desistir, o que levará o harpista a tomar outros rumos na narrativa e distanciando-se de sua tropa. Nestas veredas paralelas que o espectador percebe o forte laço entre o harpista e o seu comandante. Fracassado em sua missão, o harpista Mizushima depara-se com a morte, quer dizer, com a brutalidade dos corpos mortos de soldados, expostos à sede dos predadores.

Enquanto cruza cadáveres e caveiras empilhadas, Mizushima perambula por terras desconhecidas vestido de uma túnica de monge budista e carregando um papagaio no ombro; é quando um aborígene lhe conta que soldados estrangeiros mortos na guerra não têm direito a sepultamento. Temos aí o ponto nuclear e decisivo deste filme: Mizushima escolhe ficar na Birmânia para cuidar dos mortos de seu país, e não voltar para o Japão com sua tropa.

No que se pode aproveitar da leitura da Novielli sobre este filme, a pesquisadora acerta na seguinte colocação: “O poder da música nesse filme [...] consiste sobretudo em exprimir a beleza fundamental do espírito humano” (Novielli, Idem, p. 204). O lugar da música é nuclear neste filme. Mesmo após as escolhas feitas por Mizushima, ele continua a tocar, porque a música lhe confere algo de libertador. Não dá para não lembrar daquilo que Nietzsche já dizia que sem a música a vida seria um erro. Mizushima é a re-união originária entre música e poesia, essas duas que desde a Antiguidade sempre caminharam juntas, ou como lembra o grande ensaísta mexicano Octavio Paz, a última ocasião [a Antiguidade grega] “em que a poesia do Ocidente pôde ser música sem deixar de ser palavra” (Paz, “Signos em Rotação”, 2009, Editora Perspectiva, p.117), quer dizer, quando, antes da efetivação da escrita, a poesia era palavra cantada. Cioran também acreditava no poder da música. Dizia, inclusive, que Deus existia porque Bach existiu. Mas Cioran está muito mais preocupado com a vivência mística que se pode obter na música. Em seu segundo livro escrito em romeno e recém-traduzido para o português pelo seu tradutor José Thomaz Brum, “O Livro das Ilusões” (2014), Cioran confere à experiência musical um caráter de volta às raízes primárias da existência, um “remédio contra o desespero” (Cioran, “O Livro das Ilusões”, 2014, Editora Rocco, p. 40). Se a experiência da vida é sofrimento, ou diante do desastre da vida – lembremos que o efeito da guerra aponta sempre para um desastre, e nos filmes do Kon Ichikawa a guerra sempre vai apontar para o trágico da vida -- a música tem a magia de converter o vazio em plenitude.

Diante do trágico, a harpa de Mizushima tem esse poder de conversão que fala Cioran. Mas fica uma pergunta, uma lacuna, um anseio: por que Mizushima escolhe ficar entre cadáveres e urubus? É de uma beleza extraordinária o modo como Ichikawa expõe as escolhas de Mizushima. Nos momentos finais do filme, o harpista deixa o seu testemunho, explicando o motivo de ficar na Birmânia:

Ficarei aqui para reconstruir o caminho da guerra [...]. Por que tanta destruição caiu sobre a terra? Então uma luz iluminou meu pensamento: nenhum pensamento humano pode dar resposta a uma pergunta não humana. Como posso levar compaixão aonde só existiu a crueldade? Se todos tivéssemos compaixão... Não importa o sofrimento, a guerra, a destruição e o terror se com isto fizer nascer alguma lágrima da caridade humana”.  

A escolha do harpista é a de ficar pela memória dos mortos. Quer dizer, a escolha de Mizushima é por uma vida de renúncia e sacrifício. E mais uma vez volto a Cioran, para uma existência onde a renúncia é motor. Para Cioran, a existência é algo como “ferida aberta, chaga, inexplicável presença”, como nos diz um dos intérpretes do Cioran, Rossano Pecoraro (In: “Cioran: a filosofia em chamas”, Editora PUCRS, 2004, p. 33). Se for possível uma brevíssima síntese da ideia de existência para Cioran, Rossano Pecoraro arrisca a excelente ideia de existência no pensador romeno: “Existir é respirar, sofrer e padecer a presença do outro” (Pecoraro, Idem, p. 38). No mesmo Livro das Ilusões, Cioran lança a tese de que o sofrimento estende a renúncia. Renúncia é abertura para a tristeza do ser, uma tristeza metafísica que revela o ser isolado, o ser distante do mundo.  Para Cioran, só se há renúncia com sacrifício. Uma das passagens mais bonitas do Livro das ilusões é a seguinte: “A vida parece ganhar sentido somente no sacrifício”. Continua Cioran: “O sacrifício é a suprema afirmação através de uma suprema renúncia. Sacrificar-se por algo significa descobrir um valor pelo qual se pode renunciar a tudo o que a vida lhe oferece; mediante o sacrifício queremos salvar algo que só pode existir através da compensação da não existência. [...] O sacrifício é uma tentativa de salvar a vida por meio da morte” (Cioran, p. 45). Ora, Cioran parece estar falando diretamente para Mizushima, que descobriu o valor pelo qual renunciar. Em outros pontos, Cioran também parece falar diretamente para o harpista. Mizushima não é obrigado a levar uma vida de renúncia, porque toda renúncia nunca é obrigação, mas escolha. Diz Cioran: “Não renunciamos, queremos renunciar” (Cioran, p. 57, grifo do autor). Pelo fato de a renúncia ser uma escolha, isso faz daquele que renuncia, segundo Cioran, um herói. Continua nosso prosador romeno: “Por isso não podemos ser outra coisa senão heróis: [...] renunciar com a naturalidade de uma flor que se fecha ao entardecer” (Cioran, p.57). Logo, Mizushima herói.

Penso que a Harpa da Birmânia é um convite à meditação de tudo que há de ilusão e sofrimento no mundo. Um convite à meditação acerca da renúncia. Como diz Cioran em outra obra, ainda não traduzida para o português, “Ese maldito yo”: “a renúncia é a única ação que não é aviltante” (Cioran, 1987, p. 25).  Concordo integralmente com uma hipótese levantada por Daniel Chigurh, frequente tradutor de vários filmes japoneses e que generosamente me apresentou Kon Ichikawa, de que há uma relação de antítese entre Harpa da Birmânia e Fogo na Planície, pois se no primeiro ainda assim há uma esperança (a esperança de velar pelos mortos), uma esperança que ecoa na música de sua harpa, o segundo é puro desespero. Seguindo esta hipótese, e ao final destas notas, ficará claro que esses dois filmes são antitéticos. Mas na antítese, também vejo um encontro, um diálogo. Eis aí a genialidade de Kon Ichikawa, algo quase deleuziano: o encontro é aproximação, mas também repulsa. Encontro, mas também choque. Antítese, mas também encontro. Quero dizer, há nesses dois filmes uma tristeza de ser, a tristeza metafísica que fala Cioran. Dois filmes que nos levam a uma zona obscura de sofrimento como exercício. Dois filmes que expõem aquilo que fala Cioran, em seu antológico livro “Breviário de decomposição” (1995, Editora Rocco, p. 20) de “disciplinas de horror” em que o homem medita a podridão da existência --- Mizushima, em renúncia e sacrifício, parece mesmo estar em meditação acerca da podridão da existência.


Palco de crueldade em Fogo na Planície

Outro momento em que concordo com o também tradutor deste filme, Daniel Chigurh, é que Fogo na Planície traduz a essência do caos produzido pela guerra. Neste filme, que se passa nas Filipinas em 1945, o soldado Tamura, acometido por uma tuberculose, é declarado inválido para pertencer a uma tropa que já se encontra em situações péssimas.  Vagando por florestas, Tamura tem de sobreviver e se depara com outros vários soltados, praticamente derrotados, também tentando sobreviver. Tudo é cru neste filme, que expõe de forma seca o trágico da vida, menos nietzschianamente, e mais cioranianamente; que expõe o flagelo do humano. Ainda não vi um filme no cinema japonês que exponha de modo cru a podridão humana (se houver, espero encontrar este filme que se aproxime de Fogo da Planície). Podemos dizer que os filmes do Teruo Ishii, já aqui abordado, podem chegar perto. Mas ainda assim, Ishii está mais preocupado em expor as vísceras humanas com interesses masoquistas. Ichikawa vai mais fundo. Ichikawa não está preocupado com masoquismos, mas em chegar até a decadência do humano.

Em alguns momentos, recordei de uma frase que ouvi em um filme do Ingmar Bergman, O Ovo da Serpente (1977), que dizia: "Descubro que o real é pior que um pesadelo". Faz sentido rememorá-la, porque Fogo na Planície parece corporalizar uma tese do Cioran de seu primeiro livro, Nos cumes do desespero (Sur les cimes du désespoir), de que o homem que sofre experimenta a realidade como um banho de chamas. Eu costumo chamar esta tese de Cioran de uma “tese incendiária”. Incendiária porque, segundo Cioran e segundo o protagonista deste filme, Tamura, tudo é desastre, desespero e ruínas. Tamura tem de sobreviver, assim como Mizushima, cruzando a podridão. Tamura experimenta a morte aos poucos, atinge de modo mais profundo que Mizushima a zona de obscuridade da vida. Os momentos mais cruéis do filme são quando os soldados cedem ao canibalismo para vencer a fome. Cioran tem razão ao dizer a fome “nos arremessa para a desordem total” (“Livro das Ilusões”, p. 21).


Cena em que um soldado come outro soldado morto


Se chega a ser bizarro, é porque Ichikawa conseguiu com maestria expor a apoteose da miséria humana em um filme. Diante de tanto canibalismo, Tamura resiste. Ainda lhe resta a fagulha de um princípio, uma fagulha moral (não sei se a Maria Novielli prestou bem atenção a este filme; ora, não temos aqui um embate moral?). Mas a resistência de Tamura em ceder ao canibalismo só aumenta a sua ruína e sua loucura. Tamura parece representar a “Efígie do Fracassado” que nos diz Cioran em Breviário de Decomposição: “[...] essa sensação de cadáver futuro erigindo-se já no presente [...]” (Cioran, p. 90). A resistência de Tamura é apenas uma espera. Um homem carcomido a espera do Nada.

Se em Harpa da Birmânia havia certa esperança, neste não há nenhuma esperança. Se no primeiro o protagonista escolhe a renúncia, neste o protagonista não escolhe aquela situação. Tamura é jogado naquele espaço de ruínas como pedra rolada. Seu destino é vagar, perambular. Não há salvação em Fogo na Planície. E se há, está longe. Concluo estas notas com a definição de Cioran de animal metafísico, que serve para Tamura: “Somos animais metafísicos pela podridão que abrigamos dentro de nós” (Cioran, “Breviário de Decomposição”, p. 139). Tamura, enfermo e ausente de boa saúde, compreende a morte de modo mais profundo que Mizushima, de modo mais essencial: porque só na enfermidade se compreende a morte de modo essencial, segundo Cioran: “só se compreende a morte quem sente a vida como uma agonia prolongada” (Cioran, "Nos cumes do desespero", 1990, edição francesa, Editora L’Herne, p.28). Vida/morte, renúncia/sacrifício, sofrimento, solidão do ser: com finais apocalípticos, Fogo na Planície e Harpa da Birmânia formam um só rosto da decadência, que poetas simbolistas tão bem conheceram. Com estes filmes, não apenas conclui-se que viver é uma enfermidade, mas estamos diante de um grande poema decadente, e ao lermos podemos enfim questionar a existência. Dois filmes que podemos dizer que são obras-primas do diretor. Seus exercícios negativos.

 


Tamura, in: Fogo na Planície

Fogo na Planície

Fogo na Planície

Mizushima, in: A Harpa da Birmânia

A Harpa da Birmânia
   
A Harpa da Birmânia




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Rodrigo Araujo.

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