O título destas notas já é
autoexplicativo. Quer dizer, já aponta para o tipo de leitura que segue. Para o
leitor do pensador romeno Emil Cioran, é sabido que “Exercícios negativos” foi o título de rascunho para a primeira obra
em língua francesa deste prosador radicado em Paris, o “Breviário de Decomposição” (Précis
de décomposition). Nestas notas, meu objetivo é: ler dois filmes dos anos
1950 do Kon Ichikawa guiado pela filosofia de Cioran.
Nascido em 1915, Kon Ichikawa tem
uma vasta produção, e em alguns de seus filmes trabalhou conjuntamente com a
esposa, Natto Wada. A pesquisadora em cinema japonês, Maria Novielli, tinha
tudo para fazer de sua enciclopédia, “História
do Cinema Japonês”, uma obra grandiosa, mas suas análises e descrenças em
alguns diretores chegam a ser assustadoras em determinados pontos, deixando sua
obra bastante mediana em termos de crítica. No tópico dedicado ao Kon Ichikawa,
Novielli começa argumentando que até o início dos anos 1960, Ichikawa “dificilmente foi autor de transgressões ou
deu espaço a embates morais” (Novielli, “História do Cinema Japonês”, p. 202). Ora, dos dois filmes do
Ichikawa que aqui resenho, “A Harpa da Birmânia” (1956) e “Fogo na Planície”
(1959), este último é justamente pura transgressão, além de esses dois filmes
serem os mais antológicos e, digamos, mais “conhecidos” deste diretor. Dois
filmes que tratam dos efeitos da guerra, e por isso mesmo ultrapassam os filmes
de Keisuke Kinoshita em matéria de efeitos da guerra, especialmente “O Rio
Fuefuke”, que já foi falado aqui. E o
que reúne Kon Ichikawa e Emil Cioran? Justamente dois nomes que perseguiram a
ideia de existência.
Música e Poesia em A Harpa da Birmânia
Harpa da Birmânia é desses filmes que enche o espectador de emoção.
O filme começa com: “Vermelhas como
sangue são as terras da Birmânia”. Já na esfera da derrota do Japão, um grupo de
soltados japoneses, situados na Birmânia, é liderado por um comandante
diplomado em música e que ensina o canto a sua tropa. Diz o narrador, no off, logo no início do filme: “O canto nos ajudava a enfrentar nossos
problemas”. Entre os soltados, o
sargento Mizushima é o harpista, que encanta a todos com sua bela habilidade no
instrumento. Mas é exigido a Mizushima intervir em outro grupo de soldados
japoneses e convencê-los a desistir, o que levará o harpista a tomar outros
rumos na narrativa e distanciando-se de sua tropa. Nestas veredas paralelas que
o espectador percebe o forte laço entre o harpista e o seu comandante.
Fracassado em sua missão, o harpista Mizushima depara-se com a morte, quer
dizer, com a brutalidade dos corpos mortos de soldados, expostos à sede dos predadores.
Enquanto cruza cadáveres e
caveiras empilhadas, Mizushima perambula por terras desconhecidas vestido de
uma túnica de monge budista e carregando um papagaio no ombro; é quando um
aborígene lhe conta que soldados estrangeiros mortos na guerra não têm direito
a sepultamento. Temos aí o ponto nuclear e decisivo deste filme: Mizushima escolhe ficar na Birmânia para cuidar
dos mortos de seu país, e não voltar para o Japão com sua tropa.
No que se pode aproveitar da
leitura da Novielli sobre este filme, a pesquisadora acerta na seguinte
colocação: “O poder da música nesse filme
[...] consiste sobretudo em exprimir a beleza fundamental do espírito humano”
(Novielli, Idem, p. 204). O lugar da
música é nuclear neste filme. Mesmo após as escolhas feitas por Mizushima, ele
continua a tocar, porque a música lhe confere algo de libertador. Não dá para
não lembrar daquilo que Nietzsche já dizia que sem a música a vida seria um erro. Mizushima é a re-união originária entre música e
poesia, essas duas que desde a Antiguidade sempre caminharam juntas, ou como
lembra o grande ensaísta mexicano Octavio Paz, a última ocasião [a Antiguidade
grega] “em que a poesia do Ocidente pôde
ser música sem deixar de ser palavra” (Paz, “Signos em Rotação”, 2009, Editora Perspectiva, p.117), quer dizer,
quando, antes da efetivação da escrita, a poesia era palavra cantada. Cioran
também acreditava no poder da música. Dizia, inclusive, que Deus existia porque
Bach existiu. Mas Cioran está muito mais preocupado com a vivência mística que
se pode obter na música. Em seu segundo livro escrito em romeno e recém-traduzido
para o português pelo seu tradutor José Thomaz Brum, “O Livro das Ilusões” (2014), Cioran confere à experiência musical
um caráter de volta às raízes primárias da existência, um “remédio contra o desespero” (Cioran, “O Livro das Ilusões”, 2014, Editora Rocco, p. 40). Se a experiência
da vida é sofrimento, ou diante do desastre da vida – lembremos que o efeito da
guerra aponta sempre para um desastre, e nos filmes do Kon Ichikawa a guerra
sempre vai apontar para o trágico da vida -- a música tem a magia de converter o vazio em plenitude.
Diante do trágico, a harpa de
Mizushima tem esse poder de conversão que fala Cioran. Mas fica uma pergunta,
uma lacuna, um anseio: por que Mizushima escolhe
ficar entre cadáveres e urubus? É de uma beleza extraordinária o modo como
Ichikawa expõe as escolhas de Mizushima. Nos momentos finais do filme, o
harpista deixa o seu testemunho, explicando o motivo de ficar na Birmânia:
“Ficarei aqui para reconstruir o caminho da guerra [...]. Por que tanta destruição caiu sobre a terra? Então uma luz iluminou meu pensamento: nenhum pensamento humano pode dar resposta a uma pergunta não humana. Como posso levar compaixão aonde só existiu a crueldade? Se todos tivéssemos compaixão... Não importa o sofrimento, a guerra, a destruição e o terror se com isto fizer nascer alguma lágrima da caridade humana”.
A escolha do harpista é a de ficar pela memória dos mortos. Quer dizer, a escolha de Mizushima é por uma vida de renúncia e sacrifício. E mais uma vez volto a Cioran, para uma existência onde a renúncia é motor. Para Cioran, a existência é algo como “ferida aberta, chaga, inexplicável presença”, como nos diz um dos intérpretes do Cioran, Rossano Pecoraro (In: “Cioran: a filosofia em chamas”, Editora PUCRS, 2004, p. 33). Se for possível uma brevíssima síntese da ideia de existência para Cioran, Rossano Pecoraro arrisca a excelente ideia de existência no pensador romeno: “Existir é respirar, sofrer e padecer a presença do outro” (Pecoraro, Idem, p. 38). No mesmo Livro das Ilusões, Cioran lança a tese de que o sofrimento estende a renúncia. Renúncia é abertura para a tristeza do ser, uma tristeza metafísica que revela o ser isolado, o ser distante do mundo. Para Cioran, só se há renúncia com sacrifício. Uma das passagens mais bonitas do Livro das ilusões é a seguinte: “A vida parece ganhar sentido somente no sacrifício”. Continua Cioran: “O sacrifício é a suprema afirmação através de uma suprema renúncia. Sacrificar-se por algo significa descobrir um valor pelo qual se pode renunciar a tudo o que a vida lhe oferece; mediante o sacrifício queremos salvar algo que só pode existir através da compensação da não existência. [...] O sacrifício é uma tentativa de salvar a vida por meio da morte” (Cioran, p. 45). Ora, Cioran parece estar falando diretamente para Mizushima, que descobriu o valor pelo qual renunciar. Em outros pontos, Cioran também parece falar diretamente para o harpista. Mizushima não é obrigado a levar uma vida de renúncia, porque toda renúncia nunca é obrigação, mas escolha. Diz Cioran: “Não renunciamos, queremos renunciar” (Cioran, p. 57, grifo do autor). Pelo fato de a renúncia ser uma escolha, isso faz daquele que renuncia, segundo Cioran, um herói. Continua nosso prosador romeno: “Por isso não podemos ser outra coisa senão heróis: [...] renunciar com a naturalidade de uma flor que se fecha ao entardecer” (Cioran, p.57). Logo, Mizushima herói.
“Ficarei aqui para reconstruir o caminho da guerra [...]. Por que tanta destruição caiu sobre a terra? Então uma luz iluminou meu pensamento: nenhum pensamento humano pode dar resposta a uma pergunta não humana. Como posso levar compaixão aonde só existiu a crueldade? Se todos tivéssemos compaixão... Não importa o sofrimento, a guerra, a destruição e o terror se com isto fizer nascer alguma lágrima da caridade humana”.
A escolha do harpista é a de ficar pela memória dos mortos. Quer dizer, a escolha de Mizushima é por uma vida de renúncia e sacrifício. E mais uma vez volto a Cioran, para uma existência onde a renúncia é motor. Para Cioran, a existência é algo como “ferida aberta, chaga, inexplicável presença”, como nos diz um dos intérpretes do Cioran, Rossano Pecoraro (In: “Cioran: a filosofia em chamas”, Editora PUCRS, 2004, p. 33). Se for possível uma brevíssima síntese da ideia de existência para Cioran, Rossano Pecoraro arrisca a excelente ideia de existência no pensador romeno: “Existir é respirar, sofrer e padecer a presença do outro” (Pecoraro, Idem, p. 38). No mesmo Livro das Ilusões, Cioran lança a tese de que o sofrimento estende a renúncia. Renúncia é abertura para a tristeza do ser, uma tristeza metafísica que revela o ser isolado, o ser distante do mundo. Para Cioran, só se há renúncia com sacrifício. Uma das passagens mais bonitas do Livro das ilusões é a seguinte: “A vida parece ganhar sentido somente no sacrifício”. Continua Cioran: “O sacrifício é a suprema afirmação através de uma suprema renúncia. Sacrificar-se por algo significa descobrir um valor pelo qual se pode renunciar a tudo o que a vida lhe oferece; mediante o sacrifício queremos salvar algo que só pode existir através da compensação da não existência. [...] O sacrifício é uma tentativa de salvar a vida por meio da morte” (Cioran, p. 45). Ora, Cioran parece estar falando diretamente para Mizushima, que descobriu o valor pelo qual renunciar. Em outros pontos, Cioran também parece falar diretamente para o harpista. Mizushima não é obrigado a levar uma vida de renúncia, porque toda renúncia nunca é obrigação, mas escolha. Diz Cioran: “Não renunciamos, queremos renunciar” (Cioran, p. 57, grifo do autor). Pelo fato de a renúncia ser uma escolha, isso faz daquele que renuncia, segundo Cioran, um herói. Continua nosso prosador romeno: “Por isso não podemos ser outra coisa senão heróis: [...] renunciar com a naturalidade de uma flor que se fecha ao entardecer” (Cioran, p.57). Logo, Mizushima herói.
Penso que a Harpa da Birmânia é um convite à meditação de tudo que há de ilusão
e sofrimento no mundo. Um convite à meditação acerca da renúncia. Como diz
Cioran em outra obra, ainda não traduzida para o português, “Ese maldito yo”: “a renúncia é a única ação que não é aviltante” (Cioran, 1987, p.
25). Concordo integralmente com uma hipótese
levantada por Daniel Chigurh,
frequente tradutor de vários filmes japoneses e que generosamente me apresentou
Kon Ichikawa, de que há uma relação de
antítese entre Harpa da Birmânia
e Fogo na Planície, pois se no
primeiro ainda assim há uma esperança
(a esperança de velar pelos mortos), uma esperança que ecoa na música de sua
harpa, o segundo é puro desespero. Seguindo esta hipótese, e ao final destas
notas, ficará claro que esses dois filmes são antitéticos. Mas na antítese,
também vejo um encontro, um diálogo. Eis aí a genialidade de Kon Ichikawa, algo
quase deleuziano: o encontro é aproximação, mas também repulsa. Encontro, mas
também choque. Antítese, mas também encontro. Quero dizer, há nesses dois
filmes uma tristeza de ser, a tristeza metafísica que fala Cioran. Dois filmes
que nos levam a uma zona obscura de
sofrimento como exercício. Dois filmes que expõem aquilo que fala Cioran,
em seu antológico livro “Breviário de
decomposição” (1995, Editora Rocco, p. 20) de “disciplinas de horror” em que o homem medita a podridão da
existência --- Mizushima, em renúncia e sacrifício, parece mesmo estar em
meditação acerca da podridão da existência.
Palco de crueldade
em Fogo na Planície
Outro momento em que concordo com o também tradutor deste filme, Daniel Chigurh,
é que Fogo na Planície traduz a essência do caos produzido pela
guerra. Neste filme, que se passa nas Filipinas em 1945, o soldado Tamura,
acometido por uma tuberculose, é declarado inválido para pertencer a uma tropa
que já se encontra em situações péssimas.
Vagando por florestas, Tamura tem de sobreviver e se depara com outros
vários soltados, praticamente derrotados, também tentando sobreviver. Tudo é
cru neste filme, que expõe de forma seca o trágico
da vida, menos nietzschianamente, e mais cioranianamente; que expõe o
flagelo do humano. Ainda não vi um filme no cinema japonês que exponha de modo
cru a podridão humana (se houver, espero encontrar este filme que se aproxime
de Fogo da Planície). Podemos dizer
que os filmes do Teruo Ishii, já aqui abordado, podem chegar perto. Mas ainda
assim, Ishii está mais preocupado em expor as vísceras humanas com interesses
masoquistas. Ichikawa vai mais fundo. Ichikawa não está preocupado com
masoquismos, mas em chegar até a decadência do humano.
Em alguns momentos, recordei de uma frase que ouvi em um filme do Ingmar
Bergman, O Ovo da Serpente (1977),
que dizia: "Descubro que o real é pior que
um pesadelo". Faz sentido rememorá-la, porque Fogo na Planície parece
corporalizar uma tese do Cioran de seu primeiro livro, Nos cumes do desespero
(Sur les cimes du désespoir), de que o homem que sofre experimenta a realidade
como um banho de chamas. Eu costumo chamar esta tese de Cioran de uma “tese
incendiária”. Incendiária porque, segundo Cioran e segundo o protagonista deste
filme, Tamura, tudo é desastre, desespero e ruínas. Tamura tem de sobreviver,
assim como Mizushima, cruzando a podridão. Tamura experimenta a morte aos
poucos, atinge de modo mais profundo que Mizushima a zona de obscuridade da
vida. Os momentos mais cruéis do filme são quando os soldados cedem ao
canibalismo para vencer a fome. Cioran tem razão ao dizer a fome “nos arremessa
para a desordem total” (“Livro das Ilusões”, p. 21).
Se chega a ser bizarro, é porque Ichikawa conseguiu com maestria expor a apoteose da miséria humana em um filme. Diante de tanto canibalismo, Tamura resiste. Ainda lhe resta a fagulha de um princípio, uma fagulha moral (não sei se a Maria Novielli prestou bem atenção a este filme; ora, não temos aqui um embate moral?). Mas a resistência de Tamura em ceder ao canibalismo só aumenta a sua ruína e sua loucura. Tamura parece representar a “Efígie do Fracassado” que nos diz Cioran em Breviário de Decomposição: “[...] essa sensação de cadáver futuro erigindo-se já no presente [...]” (Cioran, p. 90). A resistência de Tamura é apenas uma espera. Um homem carcomido a espera do Nada.
Se em Harpa da Birmânia havia
certa esperança, neste não há nenhuma esperança. Se no primeiro o protagonista
escolhe a renúncia, neste o protagonista não escolhe aquela situação. Tamura é
jogado naquele espaço de ruínas como pedra rolada. Seu destino é vagar,
perambular. Não há salvação em Fogo na Planície. E se há, está longe. Concluo
estas notas com a definição de Cioran de animal metafísico, que serve para
Tamura: “Somos animais metafísicos pela podridão que abrigamos dentro de nós”
(Cioran, “Breviário de Decomposição”, p. 139). Tamura, enfermo e ausente de boa
saúde, compreende a morte de modo mais profundo que Mizushima, de modo mais
essencial: porque só na enfermidade se compreende a morte de modo essencial,
segundo Cioran: “só se compreende a morte quem sente a vida como uma agonia
prolongada” (Cioran, "Nos cumes do desespero", 1990, edição francesa,
Editora L’Herne, p.28). Vida/morte, renúncia/sacrifício, sofrimento, solidão do
ser: com finais apocalípticos, Fogo na Planície e Harpa da Birmânia formam um
só rosto da decadência, que poetas simbolistas tão bem conheceram. Com estes
filmes, não apenas conclui-se que viver é uma enfermidade, mas estamos diante
de um grande poema decadente, e ao lermos podemos enfim questionar a
existência. Dois filmes que podemos dizer que são obras-primas do diretor. Seus
exercícios negativos.
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