Ora vejam: por que ainda nos assombra a crueldade? E chorar? Não é evidente que choramos não apenas
diante da dor e do horror da vida? Não é isto que nos diz o padre António
Vieira ao referir-se ao riso de Demócrito como uma ironia da lágrima? (A.
Vieira, in As lágrimas de Heráclito, sermão
italiano em edição brasileira pela Ed. 34). Ou tudo isto – amor, tristeza,
raiva, alegria – não é senão afeto?
§
Difícil mesmo é definir o cinema de Imamura dentro do cinema
japonês pós-50. Quer dizer: fácil, mas igualmente fácil de se perder e ficar no
óbvio. Cinema escorregadio. Minado. Cruel, às vezes. Começo pela sua crítica.
Muito concentrada, aliás, nas primeiras produções de Imamura: “a predileção
pelas camadas mais baixas da sociedade” como tema nuclear (Maria Roberta
Novielli, in História do Cinema Japonês,
2007, Ed. UnB, p. 221); o que logo lhe rendeu a etiqueta de sociólogo do cinema japonês: “Imamura’s
fascination with social anthropology” (Tom Mes and Jasper Sharp in The Midnight Eye guide to japanese film,
Stone Bridge Press, CA, 2005, p. 37). Vem da matéria social,
portanto, talvez uma justa definição do cinema de Imamura:
“His obsessive and
visually intricate explorations of what he has termed ‘the relationship of the
lower part of the human body and the lower part of the social structure on
which the reality of daily Japanese life supports itself’ certainly propose a provocative
association between the unreliable nature of ordinary cinematic representation
and the insecurities behind conventional Japanese social organization”
(Alastair Philips, in Japanese Cinema:
Texts and Contexts, Routledge Press, 2007, p. 229).
Seus filmes iniciais seguem essa
estrutura, como Todos Porcos (Pigs
and Battleships, 1961), A mulher inseto
(The insect woman, 1963) e Introdução à
Antropologia (The Pornographers, 1966), por exemplo.
Perdoem-me, mas não é deste
Imamura que irei falar. Mas de um Imamura mais profundo, mais outro. Profundo, inclusive, está no título deste
interessante filme de 1968: O profundo
desejo dos deuses (The profound desire of the gods). Digo interessante
porque os primeiros filmes de Imamura, os filmes que a crítica maioritariamente
adora, parecem rascunhos, exercícios de alguma coisa por vir, de algum talento
por revelar. E veio. E revelou-se. O
profundo desejo dos deuses é daqueles filmes que ao término de suas 3 horas
de duração pode-se dizer “filme” ou “filme completo”. Digo: um filme maduro.
Elaborado. Pensado. Maria Novielli também se apercebeu disto ao dizer que este
é o “primeiro grande trabalho e [de] atenta reflexão antropológica” (Idem, p. 254). Pode-se dizer, e digo sem
medo, que o excelente cinema de Imamura pós-1968 (o cruel Minha Vingança, a refilmagem do clássico A Balada de Narayama e A
Enguia, por exemplo) é totalmente devedor do seu empenho em O profundo desejo dos deuses.
Uma alegria breve: na ilha Kuragejima todos parecem estar
ilhados, do mundo e de si próprio. Este isolamento, por si um tema narrativo
clássico na literatura, é, digamos, bem executado no filme. A família Futori,
um clã, é chefiada pelo avô Yamamori. Nesta narrativa tudo cheira à decadência (não a decadência dos poetas
simbolistas, ressalto): o nascimento incestuoso de Nekichi, o seu amor velado
pela sua irmã Uma, e os dois filhos de Nekichi: a tresloucada Toriko e o mais
equilibrado do filme, Kame. Toriko é a personagem que parece herdar toda a
insuficiência moral desta família, pois ela tem desejos com o seu irmão Kame. E
por isso Kame parece ser o mais equilibrado, pois resiste e vê sua irmã apenas
como um apático ser.
Mas por que alegria breve? Não parece ser este o cenário
ideal para um teatro da loucura? Ou mais um filme sobre a moralidade? Faço referência
ao romance Alegria Breve, do escritor
português Vergílio Ferreira. O que o romance e o filme têm em comum (impossível
a Vergílio Ferreira conhecer o filme e sequer o diretor, pois este romance é de
1964, embora Vergílio fosse um escritor atento ao cinema – europeu –, visto uma
pequena alusão ao cinema de Bergman neste romance Alegria Breve): há um “leitmotiv” neste isolamento dos personagens,
que é o puro impedimento da técnica. No
filme e no romance os personagens estão estacionados em suas terras por um
duplo motivo: (i) um amor à terra ligado e dependente da impossibilidade de
existência fora dela; (ii) o medo de que a técnica (o progresso, a chegada de
indústrias e tecnologia) destrua/substitua o estilo rudimentar de vida o qual
estão inseridos.
Primeiro: sabemos que por trás da noção de amor à terra está
um elo entre o Eu (sujeito) e o meio externo (objeto) que não é novo e que
carrega sua poeticidade (levada à exaustão, por exemplo, na filosofia epistemológica
francesa de um Gaston Bachelard). No filme de Imamura, os personagens são a ilha. Com todo o mito que está ao
redor e solidifica a relação: a crença de que a derrubada de uma
pedra-obstáculo trará de volta a produção perdida, a proibição de pesca com
bombas para não contrariar os deuses, por exemplo. Como no romance de Vergílio
Jaime é o único habitante de uma aldeia abandonada que ficou porque “alguém
tinha que ficar”, porque não podia viver senão ali, porque a casa é seu
universo de intimidade (como irá dizer, depois, no diário Conta-Corrente, volume II, acerca da intimidade com a casa).
Segundo: o pensamento estético (assumo Estética não
dissociada da Ética) pode nos assegurar que o medo também um afeto, uma paixão
(a Terceira Ética de Espinosa, por
exemplo, pode nos dizer isto). Como Hobbes pensava ser o medo sua mais alta
paixão. O medo impulsiona estes personagens numa espécie de devoção silenciosa.
No caso de Imamura, temos um Japão que está em fase de transição para a
tecnificação e para a influência ocidental estadunidense pós Segunda Guerra
Mundial. Os filmes iniciais de Imamura retratam com total exatidão a abertura
do Japão para a ocidentalização através da ótica mais vil da sociedade, com um
olhar do periférico. Nisso Imamura acerta e faz um ótimo trabalho. Mas em O profundo desejo dos deuses tudo é
sutil. E perigoso, até. Os dois personagens mais velhos da ilha, Yamamori e Ryu
(mais este último), aproveitam-se do medo para controlar os demais. Sejamos
mais cruéis: para domesticá-los. Para
pôr uma ordem. Algo que não nos soa
estranho: quando uma população inofensiva e apática deixa-se governar por
falsos heróis.
Caberia mais provocação neste pode-se levantar neste
interessante filme de Imamura: não parece que o filme reafirma aquilo que,
séculos atrás, o filósofo francês Blaise Pascal dizia no século XVII acerca do
divertimento (divertissement)? Não é
o próprio divertissement aquilo que
tem o poder de distrair? Não é isto
que vemos na cena do engenheiro (representação da técnica que se quer
timidamente avançar na ilha) que se rende aos caprichos da louca Toriko e por
ela se apaixona?
Soma das partes para conclusão: o que está em jogo neste
campo de isolamento é isto, alegria breve: profunda
solidão, inquietação, dúvida, silêncio. Tanto os personagens de Vergílio
Ferreira quanto os de Imamura tentam resistir à técnica. Mas, aos poucos, ela
chega. São extraordinárias as sutis cenas em que se pode ver a marca da
Coca-Cola aparecer em O profundo desejo
dos deuses quando a ilha ganha um aeroporto anos mais tarde. Afinal, tradição x modernidade é mesmo o grande tema
da sociedade japonesa da época, fazendo deste filme uma obra grandiosa. E
consequentemente, um outro Imamura
afora a etiqueta de sociólogo do cinema.
Uma passagem do romance do Vergílio (uma das passagens mais
significativas do inquietante romance Alegria
Breve) pode até funcionar como uma epígrafe para o filme de Imamura, e com
ela encerro esta nota: “Não chamo nem pelo pai, nem pela mãe. Chamo apenas pela
vida” (A.B, p. 127). E tudo o mais, entre o filme e o romance, é profundo silêncio.
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Rodrigo Araujo