Uma certa cartomante: ação e destino em Mikio Naruse

By rodrigo araujo - novembro 07, 2020

          




            Mikio Naruse nos deixou uma lista invejável de filmes: mais ou menos cinquenta e um. Tratarei de um filme de 1960, Quando a mulher sobe as escadas. O filme trata de uma personagem, Keiko, ou também chamada de "Mama", que trabalha como hôtesse nos bares de Ginza, durante as noites em que os homens nada mais querem que um copo de conhaque, ou um Black & White com água, e uma mulher para se divertir. Para ter acesso ao bar onde trabalha, Mama tem que subir alguns degraus que, para ela, parecem assumir os contornos de uma verdadeira via-crucis. "Eu odiava subir aquelas escadas, mais do que qualquer coisa", pensa Mama. 

             O dinheiro é uma questão central neste filme, assumindo diversas implicações na narrativa e sendo decisivo nas tomadas de decisões da protagonista. Mama está enfastiada da vida que leva, do trabalho, do ambiente noturno regado a bebidas e homens passageiros. É o fastio existencial que decerto recobre a personagem. Fastio sobretudo pela sua posição humilhante e degradante com a qual se vê e se reconhece. Aos vinte minutos de filme, vemos um pensamento de Mama, em off, que reflete sua insatisfação perante o real: "Mais de 16, 000 mulheres de Ginza voltam para casa. As melhores vão de taxi, as de segunda linha pegam o trem, e as piores saem com os clientes". É portante o lugar do pior que Mama se encontra.              

              A ação do filme se desenvolve de modo cuidadoso, muito bem filmado. Mama quer algo a mais da vida. Tem fome de algo a mais que a vida lhe oferece. Não quer apenas aquele pão duro que a vida lhe joga na cara, para lembrarmos de uma antológica cena de um filme de Kaneto Shindô, Fossa (Ditch), de 1954. Mama tem sonhos, desejos, enfim, esperança.  

         Na tentativa de alimentar essa esperança, Mama decide procurar uma cartomante. E é esse o elemento da narrativa que irá desencadear uma série de ações, no filme, culminando no destino da protagonista. Há diversos elementos interessantes na obra que eu optarei por deixar de lado para me concentrar na leitura da cartomante. E quero ler esta cena junto com Clarice Lispector, pois acredito há uma proximidade entre o filme e o último romance de Clarice, A hora da estrela

            Em Clarice, a personagem Macabéa (que, numa perspectiva "exterior", de fora, pouco tem a ver com a Mama, mas, interiormente, podem comungar de algumas semelhanças quanto a um desejo de querer algo a mais da vida) é mais ou menos coagida a procurar uma cartomante, Mme. Carlota, que maliciosamente lhe entrega uma "previsão" do destino da personagem. 

           Em Naruse, Mama não é coagida, mas recebe a "dica" da existência de uma cartomante, pessoa fiável, logo no momento em que há uma cena de suicídio de uma "garota" que trabalhava no bar Pássaro Azul. A cartomante alerta para o destino de Mama: irá receber uma proposta de casamento. O efeito é o mesmo utilizado em Clarice Lispector, o que a cartomante aponta é para a concretude do destino que, na verdade, é um infortúnio. E que belíssimas cenas compõem o infortúnio de Mama, que vem pelas mãos do Sr. Sekine, homem que vai enganar Mama, iludindo-a com falsa promessa de casamento e vida próspera, sendo a mão que finalmente a tiraria daquele ambiente degradante. O que parecia ser um homem rico, era na verdade um farsante.

            Tanto em Clarice quanto em Naruse, a cartomante tem um papel de ludibriar a personagem com uma previsão ambígua. Ambas as cartomantes conduzem as personagens para o acidental destino. Em Clarice, o trágico desfecho de ser atropelada, cumprindo a previsão de que "viraria estrela". Em Naruse, a proposta de casamento se cumpre, mas era falsa, jogando a personagem Mama para o mesmo infortúnio inicial de onde começara: querer algo a mais, mas continuando na mesma estagnação. O texto de Clarice e o filme de Naruse comungam, portanto, do mesmo papel paradoxal exercido pela cartomante, dando uma espécie de pharmakon para seus clientes, algo que pode ser o seu remédio e ao mesmo tempo o seu próprio veneno. 

         Nisto Mikio Naruse se efetiva como um mestre de um cinema carregado de simplicidade (e pobreza), mas com sua densa carga poética. Certamente o mote que levou a especialista de cinema japonês que sempre recorro, para concordar ou não, Maria Roberta Novielli, a ler o cinema de Mikio Naruse a partir de um termo japonês quase intraduzível, o "wabi" --- a titulo de nota, vale ler o ensaio da professora Michiko Okano (UNIFESP) sobre a estética do "wabi-sabi" na arte japonesa. Para Novielli, o grande trunfo do cinema de Mikio Naruse é o mundo retratado, retratado como um "wabi estranhamente pessimista e irremediável, por meio de personagens obrigados a aceitar passivamente o pouco que a vida lhes oferece" (Novielli, História do cinema japonês, ed. UnB, 2007, p. 94).


Rodrigo Michell Araujo.


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