Paulo Leminski: um tear de palavras ou uma máquina de pensar

By rodrigo araujo - dezembro 02, 2011




          Tomar a linguagem como objeto para a compreensão de uma filosofia da linguagem, filosofia esta que Auroux (2009) chamou atenção para não ser reduzida “à filosofia das ciências da linguagem” (AUROUX, 2009, p.8), permite articular uma relação de sentido da linguagem com o mundo (1) [1], de significação como apontou Auroux, onde “o mundo participa da significação da linguagem” (AUROUX, 2009, p.64) – onde é a língua, pois, que materializa os sentidos, que muito diz de nós na relação com o exterior (excluído nas relações saussurianas); língua que também “tem formas próprias para expressar o elemento subjetivo” (GUIMARÃES, 1995, p.16). Sendo a linguagem o atributo próprio da humanidade, a escrita, assim, pode exercer a função transformadora do estatuto da fala, fazendo valer a tese de que é a escrita um jogo ordenado de signos. Signo que se dispersa no espaço.
            O poeta curitibano Paulo Leminski, em sua vida breve como um haikai, muito escreveu e ousou na escrita, assim como podemos dizer que foi um poeta que bem representou as décadas de 1970 e 1980 (por que não dizer o que melhor representou?). Leminski fez de sua vida escrita, sua “escrita-em-teia, qual um tear com fios de letras” (REBUZZI, 2004, p.351). Se sua escrita respira livre é pelo experimentalismo do poeta e pelas fortes influências de dois mestres em sua vida/poesia: Joyce e Mallarmé, “Finnegans Wake à direita, un coup de dés à esquerda” (LEMINSKI, 1994, p.19). Vida/poesia, pois ele “concretizou a existência, existencializou a concretude, viveu a forma. Tomou-se como referente da palavra como se ele mesmo fosse uma forma” (MILÁN, 2004, p.21), sendo, para ele, tudo poesia, vida-fluxo-poesia, um guerreiro-samurai das palavras ao estilo Yukio Mishima, outro escritor ícone para Leminski. Assim como Mishima, imbuído de seu código de ética de samurais, preparou o corpo para a morte – o seppuku –, Leminski preparou o corpo para a escrita.
            Foi o poeta uma “usina de ideias” (LOPES, 2004, p.53), que quis deixar não apenas um testemunho de sua passagem, “queria deixar meu processo de pensamento, minha máquina de pensar, a máquina que processa meu pensamento, meu pensar transformado em máquina objetiva” (LEMINSKI, 2004, p.136). No conto “O Resto Imortal”, do livro Gozo Fabuloso (2004), podemos seguir os passos deixados por Leminski na tentativa de deixar uma possível máquina de pensamento, que viria a ser um texto, não um texto qualquer, um texto pensante, principalmente “um texto que sentisse como eu” (LEMINSKI, 2004, p.136). Essa máquina-texto não poderia ser um humano, pois os homens não são previsíveis, tinha que ser, ainda, um texto desejado. O desejo se encontra nas últimas linhas do conto: “tudo o que eu quero é que, se [o texto] vier, se lembre de mim tanto quanto eu soube desejá-lo” (LEMINSKI, 2004, p.137). Eis a tarefa deixada por Leminski: o prazer pela linguagem, pois, como apontado por Rebuzzi (2003, p.68), “em Leminski tudo é linguagem”.
            Transformando sua vida em arte, em palavras, vem o desejo de ser lembrado, como pode ser observado em um poema do Caprichos e Relaxos (1983, p.58): “lembrem de mim/como de um que ouvia a chuva/ como quem assiste missa/ como quem hesita, mestiça/entre a pressa e a preguiça” – quantos de nós param para ouvir a chuva na atual sociedade globalizada em que vivemos? Em uma carta ao poeta Régis Bonvincino – a maior carta endereçada a ele – onde Leminski fala sobre a importância do movimento concretista para a geração e a influência que sofreu deste, diz que “é a poesia q está dentro da vida, não o contrário... viver de e para a poesia é o mesmo q viver para a caça à raposa” (LEMINSKI, 1999, p.113).
            Um desejo de ser lembrado por alguém que se apagou na escrita. “Apagar-me/diluir-me/desmanchar-me” (LEMINSKI, 1983, p.64). Apagar-se levando as últimas consequências da tese de Foucault do apagamento do autor na escrita. O autor, para Foucault, assume o papel de morto (por que não dizer que é na escrita que ele pode encontrar-se com a morte?). Da escrita e da morte, diz Foucault (2009, p.269) que a “relação da escrita com a morte também se manifesta no desaparecimento das características individuais do sujeito que escreve” diante do texto, significando sua ausência. Se o autor desaparece no texto, Foucault nos atenta para observarmos os espaços vazios deixados pela ausência (2)[2]. Que o autor deva se apagar no texto não quer dizer, seguindo Foucault, que o autor nunca tenha existido e não existe, o desaparecimento do autor permite descobrir, pois, a função autor e tentar definir de que maneira essa função exerce.
            O acaso assim levou o poeta ao desaparecimento e à morte – acaso mallarmaico. E o poeta “escreve então a prova de sua desaparição em meio às palavras” (DICK, 2004, p.73) e sobre o acaso. “Ai do acaso/se não ficar do meu lado” (LEMINSKI, 1994, p.93).  Do encontro com a morte pelo desaparecimento o alívio, e eis que “aqui já um artista/mestre em disfarces/viver com a intensidade da arte/levou-o ao infarte/deus tenha pena de seus disfarces” (LEMINSKI, 1994, p.82-3).
            Mas será que se poderia pensar em estilo do poeta Leminski? O que caracterizaria o seu estilo? É nas máximas de Roland Barthes (1984) que podemos articular a ideia de língua, como objeto social, sob o nome de estilo, estilo como “a ‘coisa’ do escritor, seu esplendor e sua prisão, sua solidão (...), transmutação de Humor” (BARTHES, 1984, p.122). Na mesma carta para Régis, Leminski dá pistas sobre seu estilo, sobre sua poesia: “precisamos tirar a poesia da vertigem/miragem do novo (...), quero fazer uma poesia que as pessoas entendam. q não precise dar de brinde um tratado sobre Gestalt ou uma tese de Jakobson sobre as estruturas subliminares dos anagramas” (LEMINSKI, 1999, p.111). A poesia de Leminski não fala de estrelas como metáfora do amor, dá nome às coisas e pronto. Poesia-fluxo, tão intensa e direta como sua vida, rompendo o limítrofe do autor com o texto. Poesia que brinca com as palavras sob o pano do humor. Poesia ex-estranha.

REFERÊNCIAS
AUROUX, Sylvain. Filosofia da Linguagem. São Paulo: Parábola, 2009.
BARTHES, Roland. Novos ensaios críticos seguidos de O Grau Zero da Escritura. São Paulo: Cultrix, 1984.
DICK, André. Paulo Leminski: depois do acaso. In: DICK, André; CALIXTO, Fabiano (orgs). A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
ECO, Umberto. Interpretação e História. In: Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
FOUCAULT, Michel. O que é um autor? In: Ditos e Escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.
GUIMARÃERS, Eduardo. Os limites do sentido: um estudo histórico e enunciativo da linguagem. São Paulo: Pontes, 1995.
LEMINSKI, Paulo. Caprichos e Relaxos. São Paulo: Brasiliense, 1983.
__________. La vie en close. São Paulo: Brasiliense, 1994.
__________. Gozo Fabuloso. São Paulo: DBA Artes Gráficas, 2004.
LEMINSKI, Paulo; BONVINCINO, Régis. Envie meu dicionário: cartas e alguma crítica. São Paulo: Ed.34, 1999.
LOPES, Rodrigo Garcia. Meu encontro com a “besta dos pinheirais”. In: DICK, André; CALIXTO, Fabiano (orgs). A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
MACHADO, Irene. O filme que Saussure não viu: o pensamento semiótico de Roman Jakobson. São Paulo: Ed. Horizonte, 2008.
MILÁN, Eduardo. Esboço a distância (o que aparece de longe, também nos textos): Leminski. In: DICK, André; CALIXTO, Fabiano (orgs). A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.
REBUZZI, Solange. Leminski, guerreiro da linguagem: uma leitura das cartas-poema de Paulo Leminski. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.
___________. As cartas-poema de Paulo Leminski: um poeta em seu hibridismo. In: DICK, André; CALIXTO, Fabiano (orgs). A linha que nunca termina: pensando Paulo Leminski. Rio de Janeiro: Lamparina, 2004.



(1) [1] Convém citar a contribuição de Irene Machado em seu livro O filme que Saussure não viu: o pensamento semiótico de Roman Jakobson (2008, p.51), onde ela diz que o “mecanismo fundamental da linguagem é a produção de sentido”
(2) [2] Sobre os vazios do texto, vale lembrar que, por um lado, a Estética da Recepção, com Jauss e Iser, trouxe o leitor para o processo autor-texto; por outro lado, bem salientou Umberto Eco no capítulo Interpretação e História do livro Interpretação e Superinterpretação (1993) que o leitor precisa observar os vazios do texto a fim de compreender que este é seu segredo. 




ARAUJO, RODRIGO M. S.

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