O Erostrato de Jean-Paul Sartre: algumas notas de filosofia e literatura

By rodrigo araujo - novembro 05, 2011

O diálogo entre Filosofia e Literatura é  tão antigo quanto imaginamos. Filósofos que se valeram da literatura, e poetas que se apropriaram de questões filosóficas. Mas não significa reduzir a obra literária a um espaço que ilustra teses filosóficas, por exemplo. Dos diálogos entre Filosofia e Literatura, tem-se apontado a necessidade de “desconstruir, na teoria e na prática discursiva, o legado autoritário das disposições disciplinares”, como diz o ensaísta Evando Nascimento. Não apenas para pôr por terra as disciplinas, mas por acreditar que é na constituição de um espaço aberto na obra literária que se dá o diálogo entre ambos os discursos. Para proporcionar um encontro entre filosofia e literatura, é preciso que uma fecunde na outra, numa relação transacional, para lembrarmos do crítico literário e filósofo Benedito Nunes, que em sua atividade crítica buscou investigar a "transa" entre filosofia e literatura. Relação onde uma polariza a outra, sem que filosofia deixe de ser filosofia ao engendrar-se no poético, nem que literatura deixe de ser literatura por tornar-se filosófica, sendo a linguagem, para Benedito Nunes, o cordão que as liga.
Mapeada essas relações, podemos chegar a Jean-Paul Sartre, filósofo e ficcionista. Tomar-se-á aqui como corpus de análise o conto Erostrato, do livro O Muro (1980). O personagem protagonista da narrativa, que poderíamos chamar de anti-herói, é Paul Hilbert, um homem que vive isolado em seu apartamento do sexto andar, sendo seu passatempo ficar na sacada olhando os homens do alto, mas que, às vezes, desce às ruas – o que o sufoca (tal movimento de descida para o encontro com os homens chega a lembrar o pastor Zaratustra em Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche, que, isolado por anos nas montanhas, desce para a cidade para apresentar seu evangelho). A narrativa começa com o pronunciamento de Hilbert: “É preciso ver os homens do alto. Eu apagava a luz e me punha à janela. Eles não suponham, absolutamente, que alguém pudesse observá-los de cima” (SARTRE, 1980, p.69). É a sua sacada que possibilita o distanciamento entre ele e a humanidade:
A sacada do sexto andar – eis onde eu deveria passar toda a vida. É preciso escorar as superioridades morais com símbolos materiais, sem o que elas se desmoronam. [...] Estou colocado acima do humano que existe em mim e o contemplo. Eis porque gostava das torres da Notre-Dame, das plataformas da torrei Eiffel, do Sacré-Coeur, do meu sexto andar da rua Delambre. São excelentes símbolos (SARTRE, 1980, p.69).
            Além de descrever paisagens de Paris onde se podia ver o homem do alto, Hilbert descreve ambientes que costuma transitar em sua descida, como a rua Montparnasse, o bulevar Edgar-Quinet e o café Coupole. Transeunte desse cenário parisiense, Hilbert compra um revólver e arquiteta seu plano de “atirar em homens” (SARTRE, 1980, p.71). Assumia que “tudo começou a melhorar desde o dia em que comprei o revólver. A gente se sente forte quando carrega constantemente consigo uma dessas coisas que podem explodir e fazer barulho” (SARTRE, 1980, p.70-1). Seu plano consistia em atirar na humanidade para depois se suicidar. Entre um pensamento e outro, antes de pôr em prática seu plano, o personagem escreve uma carta-testemunho, que reproduziu em 102 exemplares para ser distribuída depois do ato, onde diz nos primeiros parágrafos:
Sóis célebre e vossas obras alcançam tiragens de 30 mil exemplares. Vou dizer-vos por quê: é que amais os homens. [...] Tereis curiosidade em saber, suponho, o que pode ser um homem que não gosta dos homens. Pois bem, sou eu e eu os amo tão pouco que vou, agora mesmo, matar meia dúzia deles (SARTRE, 1980, p.78-9).
            Os 102 exemplares seriam assim entregues em correspondência de 102 escritores franceses – tinha, pois, a intenção do personagem ser visto e, posteriormente, lido, o que tencionaria uma vontade de reconhecimento e valorização pelo seu ato. Hilbert, como um brado, dizia para si ser aquele ato “um crime audacioso em que o acaso influi grandemente para transformar assim essas caras de orfanato” (SARTRE, 1980, p.81), que seria um grito no céu escuro, onde, distante do mundo, é o personagem “horrivelmente só e pequeno” (SARTRE, 1980, p. 82). Do alto, o protagonista podia deleitar-se do gozo e rir da humanidade, mas a mesmo nível dos homens, nas ruas, os outros que riem de si, demonstrando ser uma pessoa frágil, sem defesas; riam quando “empurravam-me na rua, para rirem e verem o que eu faria. Eu não dizia nada” (SARTRE, 1980, p.70). Defesa essa que só foi possível com a compra do revólver, como se aquele objeto o propiciasse auto-estima. Antes de executar seu plano, recai-lhe a grande dúvida: “por que é preciso matar todos esses indivíduos que já estão mortos?” (SARTRE, 1980, p.85). Após rir da indagação, põe-se a executar o plano, mas, ao disparar tiros contra um homem, o protagonista assombra-se com todos aqueles rostos o olhando e refugia-se, não completando seu plano, e escondendo-se num banheiro de um café que invadira. Não fossem todos aqueles rostos o sufocando, entrega-se ao desespero, restando-lhe uma bala apenas, a última para si, para o suicídio, que não acontece, visto todos, entre vozes e gritos, à porta do banheiro a prendê-lo. Desistiu-se, por fim, de seu plano, desistiu de si, abriu a porta e jogou a arma ao chão.
            Parece lícito dizer que há um distanciamento do sujeito com a coletividade, com as relações sociais. “Se é impossível conceber o ser fora das relações que o ligam ao outro”, diz-nos a pesquisadora Zilá Bernd. Hilbert elide tal ligação. Parece também lícito trazer uma proposição salutar de Bernd (2003, p.22): “ou o homem se afirma e exclui o outro, ou ele se anula (...) e desaparece” (Vale notar que se levarmos as últimas consequências de excluir um Outro, pode-se cair naquilo que Leyla Perrone-Moisés chamou de purismo, inferindo um racismo disfarçado. Para isso, cf. Leyla Perrone-Moisés, Vira e Mexe Nacionalismo, 2007, Ed. Companhia das Letras). Anular-se e desaparecer – no caso do personagem Hilbert – é entregar-se a uma niilização do ser. Niilização do ser que – se tomarmos como caminho uma ideia de ser-livre que, em si, é determinação – que tem como de fundo uma nadificação fora de minhas possibilidades (cf. SARTRE, 2005).  Não obstante, Hilbert parece tentar preencher, com a eliminação do outro além da sua, um vazio que só será preenchido com a morte, movimento semelhante ao do personagem Mizoguchi, do romance O Templo do Pavilhão Dourado (1988) do escritor japonês Yukio Mishima. Ambos, mergulhados numa niilização, elaboram o preenchimento desse nada que tem como horizonte o suicídio, transformando o silêncio da morte em eco, dissipando-se no vazio pela sua aniquilação, dando à morte um gesto ético (PINGUET, 1987).
            Assim como Mizoguchi, em Mishima, Hilbert não consegue concretizar o suicídio (embora no romance de Mishima o suicídio de Mizoguchi não fique explícito por ser a narrativa um diário inacabado do personagem, não se tendo como possibilidade um futuro possível), mas pode-se concluir que ambos, diante do ato e da desistência, retornaram a si. Ambos os personagens também mantêm um distanciamento do Outro, que também é um distanciamento do mundo, como se uma porta separasse o Eu do mundo, porta ainda fechada para ambos. A tese de vida do personagem nipônico Mizoguchi de que “viver e destruir eram a mesma coisa” (MISHIMA, 1988, p.107) funciona como tese de Hilbert de que viver é destruir, para, assim, ambos poderem abrir a porta ou, no caso de Sartre, destruir o muro.


ARAUJO, RODRIGO M. S.


REFERÊNCIAS
NASCIMENTO, Evando. Literatura e Filosofia: ensaio de reflexão. In: NASCIMENTO, Evando. (org). Literatura e Filosofia: diálogos. Juiz de Fora: Editora da UFJF, 2004.
NIETZSCHE, F. Assim falava Zaratrusta. São Paulo: Escala Educacional, 2006.
NUNES, Benedito. Poesia e Filosofia: uma transa. In: Ensaios Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
PINGUET, Maurice. A morte voluntária no Japão. Rio de Janeiro: Rocco, 1987. MISHIMA, Yukio. O templo do pavilhão dourado. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. Porto Alegre: UFRGS, 2003.
SARTRE, J.P. O Muro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. 
___________. O ser e o nada: ensaios de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 2005. 

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