Uma estrada para Julio Cortázar.

By rodrigo araujo - setembro 24, 2011


             
        Grande contista latino-americano, com uma extensa obra onde perpassam elementos do fantástico e do maravilhoso (sobre esses gêneros na narrativa cf. T. Todorov Iniciação à Lit. Fantástica, 1977; I. Chiampi, O Realismo Maravilhoso, 1980), Julio Cortázar é nome de peso para a crítica latino-americana. Não falarei de sua obra, apresentarei aqui o conto que abre seu livro “Todos os fogos o fogo”, A AUTOESTRADA DO SUL. Não apenas é aquele conto que abre um livro de contos, é um conto que permite percorrer as estradas de Cortázar.
            A Autoestrada do Sul narra um acontecimento corriqueiro, bem prosaico: um engarrafamento na autoestrada que leva a pequena cidade de Fontainebleau a Paris. No conto, os personagens não são identificados por nomes, e sim pela marca dos seus carros, sendo eles a moça do Dalphine, o casal do Peugeot, as freiras do 2HP, os rapazes do Simca, um casal de velhos do ID Citroën, o soldado do Wolkswagen, o rapaz do Taunus etc – nota-se a referência à crítica da modernidade pelo nome dos carros, “máquinas-personagens” (máquinas semióticas, cf. Luciano Justino, 2011). O que parecia ser apenas um congestionamento qualquer se transforma em inusitado: o passar das horas. Sem saber o porquê do episódio, os personagens têm de se adequar àquele corte espaço-temporal. A partir de uma linguagem que usa das adjetivações, o único meio de comunicação com “o mundo” é o rádio dos carros que pouco informa os motivos do fato.
... Qualquer pessoa poderia olhar o relógio, mas era como se esse tempo, amarrado ao pulso direito ou ao bip bip do rádio, medisse outra coisa fora do tempo dos que não fizeram a estupidez de querer voltar a Paris pela autoestrada do sul.
            Os personagens sem nome (o que garante uma universalidade) formam um grupo e constroem laços de afetividade, visto que o engarrafamento não durou horas, e sim dias. No dia seguinte, para resolver problemas como a fome, um carro localizado mais a frente, que tinha um bom abastecimento de alimentos no porta-malas, passou a vender comida para os demais, assim como outro carro vendia água. Além de sem nomes, outro destaque importante do conto é que alguns personagens são identificados pelas suas funções: o médico, o engenheiro, a freira, o soldado...
            A jogada de não ter nomes e atribuir-lhes a identidade pelas funções sociais é o que chamaria de grande jogada do conto. Explico: nesse ponto há um lugar comum que permite dialogarmos com a obra do escritor português José Saramago, O Ensaio Sobre a Cegueira. Na obra de Saramago, os personagens, que começam a ficar cegos de repente, uma cegueira branca, estranha, são jogados num isolamento para quarentena. Personagens também sem nomes, apenas conhecidos por suas funções (também garantindo-lhes atributo de universalidade). A Autoestrada em Cortázar também é um isolamento, assim como a quarentena em Saramago, um “não-lugar” (cf. Marc Augé, 1994). É nesse isolamento, longe do “mundo”, de costas para a realidade, que se pode pensar a vida, a sua vida. É fora da realidade que se pode vê-la e entendê-la. Assim acontecem em ambas as obras, onde os personagens começam a construir uma espécie de sociedade, para (sobre) viver. Sociedade que acontece de tudo. Amor, envolvendo a moça da Dauphine, a morte da velha do ID, o suicídio do rapaz do Floride, somados a angústia, desespero e tédio, como diz o narrador onisciente: “um tédio sem fim pesava sobre eles”. Entre amores e desafetos, esperavam apenas o nascer do outro dia e o fim do engarrafamento. Corpos já sem destino:
 À noite, os grupos estavam em outra vida, sigilosa e privada [...] os olhos estavam tão cegos quanto a própria sombra. Sob cobertores sujos, com mão de unhas crescidas, cheirando a fechado e a roupa sem mudar, algum sinal de felicidade persistia aqui e ali.
         Dias depois, com o fim do engarrafamento e a justificativa do episódio, o trânsito voltou ao normal e os personagens puderam seguir seu destino (se é que já se lembravam dele). O isolamento ficou marcado a tal ponto de que, sempre que dava 21h parecia ser o momento do rapaz da Taunus se juntar com os demais em busca de alimento ou ver os demais se há doentes ou necessitados. Uma vez de volta à vida, à realidade, o olhar é outro. A Autoestrada do Sul é um conto que abre os caminhos para o fantástico mundo de Cortázar. 




ARAUJO, RODRIGO M. S.

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