Minha vida, meu aplauso: o grito pela liberdade de A. Herzer

By rodrigo araujo - setembro 13, 2011






Alguns se atrevem a fazer imensuráveis listas dos 100, 200, 300 livros a serem lidos antes de morrer – no fundo todos têm livros a indicar. Pois bem, sem dúvidas um livro que não pode faltar nessas listas é o livro de um poeta quase caído (se não caído) no esquecimento pela crítica literária, Anderson “Bigode” Herzer, ou Herzer. Sim, poeta paranaense de Rolândia antes chamado Sandra Mara. Poeta transexual, marginalizado, crucificado e incompreendido pela sociedade. Sua única produção, o livro A QUEDA PARA O ALTO, foi produzido em sua passagem (longa passagem) pela FEBEM na década de 80.
Sandra foi uma pessoa que teve o sofrimento e a morte como companhias. Perdeu o pai aos 4 anos de idade e a mãe aos 7. Órfã, foi adotada pelos tios. Descobriu na infância que a mãe era vulgar e infiel no casamento. Trouxe ainda as marcas de um pai que lhe assediava. Com o novo lar, sua vida continuou trucidada, não teve atenção dos tios, até o cachorro que tanto amava (depositava a chama do amor naquele pobre cão) morreu atropelado. Desiludida com o mundo e com a humanidade (pois a realidade lhe era hostil), Sandra parte em busca de um mundo que lhe conforte e encontra esse mundo no alcoolismo. Já nos 12 anos de idade se entregava no bar à cachaça, e viajava, sorria, se amenizava. E sua vida não teve muitas flores, foi parar na FEBEM a mando da tia. Sua vida na FEBEM foi dura, marcada de idas, vindas, fugas, voltas, paixões, choros e descobertas. Primeiro porque se assumiu homossexual para depois se descobrir transexual sendo conhecida pela FEBEM como “Bigode”, temida e adorada por muitos. Cheio de sensibilidade, Herzer, entre a vontade de lutar pela humanização das pessoas e a vontade de sobreviver num lugar mais justo, escreveu suas poesias na FEBEM. Mas não esperou para ver seu livro lançado, morrendo num suicídio debaixo dum viaduto.

... “a sociedade ainda não se adaptou à solidariedade, talvez por estarem habituados a viver de modo crítico que um o mundo se encontra no momento atual. [...] Gostaria de deixar aqui uma lembrança a esta sociedade ‘negra’, que talvez um dia seja suficientemente forte para poder encontrar seu caminho e sua personalidade tão perdida por entre as matérias que o homem constrói através de suas máquinas”.

MINHA VIDA, MEU APLAUSO
Fiz de minha vida um enorme palco
Sem atores, para a peça em cartaz
Sem ninguém para aplaudir este meu pranto
Que vai pingando e uma poça no palco se faz.
Palco triste é meu mundo desabitado
Solitário me apresenta como astro
Astro que chora, ri e se curva à derrota
E derrotado muito mais astro me faço.
Todo mundo reparou no meu olhar triste
Mas todo mundo estava cansado de ver isso
E todo mundo se esqueceu de minha estréia
Pois todo mundo tinha um outro compromisso.
Mas um dia meu palco, escuro, continuou
E muita gente curiosa veio me ver
Viram no palco um corpo já estendido
Eram meus fãs que vieram para me ver morrer.
Esta noite foi a noite em que virei astro
A multidão estava lá, atenta como eu queria.
Suspirei eterna e vitoriosamente
Pois ali o personagem nascia
E eu, ator do mundo, como minha solidão...
Morria!

A publicação do livro A QUEDA PARA O ALTO só foi possível graças a amizade e confiança do deputado Eduardo Suplicy e da Editora da VOZES, Rose-Marie Murato, que pediu a Herzer para escrever sua autobiografia. O livro reúne sua autobiografia em 29 capítulos extremamente singelos e extremamente carregados de dor e lágrimas, além de suas poesias, uma poesia que grita pela liberdade, uma poesia que grita para defender as minorias num momento frágil brasileiro. Herzer em sua obra lutou por menos violência na FEBEM e mais humanização.
Se Herzer desde os 4 anos teve de conviver com Thanatos, nunca esqueceu Eros. Se Thanatos arrasta Herzer para o céu da morte, Herzer leva Eros para lá. Herzer faz Eros ficar frente a frente com Thanatos em sua obra. Herzer luta com as palavras por uma sociedade melhor, já que a sociedade a joga para Hades. Seu livro é um grito de morte, mas sempre crendo em Eros presente. Uma criança-adulta que, ao se suicidar, caiu para o alto, virou astro. Sem dúvidas, um livro-grito, um livro-agonia, livro-bomba. Escrita que merece, sim, ser lida, acima de tudo, sentida!

ESTADO PSICOLÓGICO
E de chorar, já sou pranto;
De relembrar, esquecido,
Nas mãos, palmas calejadas
Cavando desejos, proibidos.
E de pensar, já sou louco,
Não há encontro para mim,
Não tenho nome em tua lista,
Não iniciei, sou sem fim.
Com tantos erros passados,
Ganhei má fama sozinho,
Com tantos passos errados
Não encontrei meu caminho.
Tentei abrir as mãos e não vi nada,
Nem mesmo aquele beijo da mulher falada,
Nem aquele antigo abraço que ganhei.
Eu lutei... perdi! Porque contigo errei.
E de pecados, sou negro,
De relutar, sou forças,
De persistir, sou sem vista,
De agredir, comunista!
Não tenho eira nem beira,
Não amor para amar,
Não posso amar quem aceita
Lutar e ver fracassar.
E vou seguindo sem luzes,
Ninguém verá minha partida,
Não quero deixar saudades,
Nem prantos na despedida.
E se me quer na lembrança,
Guarde meu nome contigo
Meu nome é nome, só nome.
É simples, mas decisivo.
Na flor das noites de sangue
Eu parto sem chorar dor,
Eu parto, mas deixo contigo
O que fui aqui,
... deixo amor.

 A GOTA DE SANGUE
Eu decai, eu persisti.
Tentei por todos os meios ser forte.
Lutei contra o tempo, chorei em silêncio.
Gritei sei nome ao vento.
Sou filho da gota, fui tempo de miséria,
Meu pai, um perdido,
Minha mãe, a megera.
Cresci vendo prantos, dormi em meio a mata,
Chorei gotas sanguineas, sou o pecado, sou a traça.
Eu ouvi seu grito de desespero,
Vi a lenta corrupção, vi o olhar do corruptor.
Vi sua vida em fase de destruição, eu vi o assassinato do amor.
Tentei, venci, porém um dia faleci.
A vitória conquistei, hoje estou na sua lembrança.
Sou talvez uma alma oculta, eu que fui esperança.

               Depois de tudo, isso se acabou.
             “O ódio, o amor envolveu; a nuvem, o vento levou; o pranto, a vida enxugou. E só ficaram a cicatriz e eu, tudo o que de minha infância restou”
A. HERZER






ARAUJO, RODRIGO M. S.

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