Susumu Hani é um dos
nomes responsáveis pela chamada Nouvelle Vague japonesa (Nuberu Bagu) e a
renovação cinematográfica pós-1950. Nome que, junto a outros aqui citados,
continua na obscuridade de nosso público.
Filho de um pai marxista e amante da obra de Brecht, e de mãe e avós
cristãos, Hani teve uma infância conturbada, da exclusão a um sentimento de inferioridade,
já que era gago – e não estranho ecoar um personagem de Yukio Mishima,
Mizoguchi, no romance “O tempo do pavilhão dourado”, que compartilha da mesma
deficiência no mundo: ser gago, gagueira que não é apenas o liame da dicotomia
belo-feio, mas também representação da monstruosidade que era sua vida em uma
realidade tão monstruosa quanto, nas ruínas do pós-guerra. A gagueira levou
Susumu Hani logo cedo aos livros de Freud, que configura ao campo psicológico
um traço forte do seu cinema. Neste ponto, Susumu Hani e o personagem
Mizoguchi, de Yukio Mishima, partilham de uma mesma ordem: a gagueira como uma
porta fechada diante do mundo, e precisava ser aberta.
A obra de Hani é vasta.
Começou documentarista, de 1952 a 1961, com uma incursão duradoura na África,
para só então passar para o cinema ficcional. Em entrevista à Lúcia Nagib,
Susumu Hani conta como se deu sua contribuição à Nuberu Bagu e como era sua relação
com a Nouvelle Vague francesa: “Talvez haja semelhanças entre a Nouvelle Vague
francesa e japonesa. E talvez eu seja um pouco responsável por isso, porque,
quando tentei entrar no cinema ficcional, ele era completamente controlado
pelos grandes estúdios, que no entanto estavam em declínio [...]. Fui um dos
dois ou três que tentaram introduzir a nouvelle vague francesa no mundo
cinematográfico japonês, porque achei que seria uma boa dinamite para destruir
uma parte do controle dos grandes estúdios , e abriria o portão para todos nós”
(In: "Em torno da Nouvelle Vague japonesa", 1993, Editora Unicamp, p. 64).
Dinamite é uma palavra ideal não só para o método que Hani expõe no comentário,
de introduzir a nouvelle vague francesa no espaço cinematográfico japonês, como
também é ideal para o próprio cinema de Hani. Os primeiros filmes de Hani
(dados obtidos em entrevistas do próprio cineasta) focam na criança, na
juventude em um mundo em colapso. Focam também no lugar da mulher, e na mulher
do pós-guerra. Ainda na entrevista à Lúcia Nagib, Hani diz: “Duas décadas após a
guerra, a condição interior particular da mulher passou a entusiasmar-me,
porque havia justamente esse misto de inocência e experiência [...]” (Idem, p.
67). Foi também pela influência do cinema francês de Jean Vigo, especificamente
o filme “Zéro de conduite”, que Hani fotografou a delinquência juvenil. Outro
comentário digno de nota para fechar uma caracterização do que é o cinema deste
singular fotógrafo da juventude diante do mundo em colapso que foi Susumu Hani,
é o da pesquisadora Maria Roberta Novielli: “Hani explorou o universo infantil
e dos jovens em geral com um estilo de absoluta liberdade [...]. Os pequenos
personagens que apresenta pertencem cada vez mais ao mundo violento e degradado
dos marginalizados” (In: “História do cinema japonês”, Editora UnB, 2007, p.
224).
O que atualmente temos
de disponível do acervo de Susumu Hani é o filme de 1968 “Nanani: O inferno do
primeiro amor”. Demasiadamente cru, impactante, e sob uma belíssima trilha
sonoridade, O Inferno do primeiro amor corporaliza o que o autor referiu à
dinamite. É um filme explosivo. Com
co-autoria de Shuji Terayama (na entrevista à Lúcia Nagib, Hani pontua que
Terayama apenas contribuiu com pequenas sugestões na hora das gravações, já que
Hani fazia tudo “na hora”, por isso deu-lhe a co-autoria nos créditos), este
filme conta a história de amor dos jovens Shun e Nanami. Em todo o tempo do
filme, Shun é a corporalização do jovem inocente, ou da inocência juvenil,
sempre com um olhar tímido, com um sorriso quase forçado. Mas não são só flores
a vida e trajetória de Shun. O filme começa com uma tentativa mal sucedida de
relação sexual entre Shun e Nanami e com o relato de nosso protagonista de ter
uma infância rebelde, tendo consequências familiares de abandono por parte dos
pais. Shun é acusado de tentar molestar uma garotinha no cemitério que, segundo
ele, era sua única amiga. Jogado em sessões de hipnose, ficamos sabendo que
Shun também era assediado pelo padrasto. Sua válvula de escape era o seu amor
por Nanami: uma garota tipicamente flauberiana que muito se assemelha a Emma
Bovary, antológico personagem de Gustav Flaubert. Nanami, uma modelo que
trabalha em uma espécie de agência nudista que mistura em si uma experiência de
lesbianismo e sadismo. O que lhe assemelha o ar flauberiano é que Nanami, dividida
entre os gracejos de Shun e o tédio da realidade, projeta o desejo em um homem
casado e pai de dois filhos que frequenta o seu local de trabalho a fim de
vê-la nua.
Lucia Nagib e Maria
Roberta Novielli têm comentários diversos referentes a este filme antológico e
forte de Susumu Hani. Para Novielli, O inferno do primeiro amor é “um canto de
amor dedicado à juventude violentada pelos adultos” (p. 226), que inscreve a
falta de liberdade sexual, a mercantilização do corpo, mas sobretudo (aí a tese
de Novielli) a tentativa de subtrair a solidão (p. 227). Diferentemente da
leitura mais existencial de Novielli, focada na solidão dos personagens, Lúcia
Nagib opta por uma leitura mais crua, mais sociológica. Para Lúcia Nagib, o
assédio que Shun sofre do padrasto configura-se como uma “experiência
homossexual” de Shun, haja vista que Shun não reage ao assédio, logo consente
(só apenas no final do filme que Shun reage aos assédios do padrasto). Nagib
também atenta para o complexo de Édipo que Shun mantém com a mãe, e por fim classifica
Nanami como prostituta. A tese de Lucia Nagib é que mesmo tendo essas “experiências
pervertidas” (p. 67) e atos delinquentes, “mesmo assim sua imagem continua sendo
a da inocência” (idem). Logo, no cinema de Hani a inocência não é sinônimo de
virgindade e pureza, mas está mais ligada a um campo de descobertas – ou no
máximo, relembrando a colocação de Susumu Hani sobre a mulher, que é
perfeitamente cabível para a leitura de Shun: um misto de inocência e
experiência.
Não concordo com a
classificação de Nanami como prostituta feita por Nagib. Nanami é
flauberianamente a corporalização de uma mulher que deseja... Ler Nanami como
prostituta é cair no velho lugar abominável de ler Emma Bovary, mulher à frente
de seu tempo, como mulher desqualificada. Não obstante, simpatizo mais à
leitura de Maria Roberta Novielli, no olhar mais existencial para o filme – não
desqualificando a leitura de Lúcia Nagib. Shun e Nanami, mishimianamente
pensando, são jovens que querem abrir a porta fechada que os separa do mundo,
jovens tateando nas savanas de um mundo em ruínas. Ironicamente Shun, ao fim de
sua trajetória turva e acinzentada, tal como Macabéa, antológico personagem de
Clarice Lispector, vira estrela. E vira estrela aos pés de sua amada, após seu único
sorriso sincero na descoberta do que é o amor, cena em que Shun grita: “este é
o primeiro amor!!!”. Por fim, as palavras que Susumu Hani utiliza na entrevista
à Lúcia Nagib melhor definem Shun e este singular filme: deslocado, destrutivo.
Um filme raro dentro do que será a Nouvelle Vague japonesa e dentro do cinema
japonês. Raro por construir um espaço de sensibilidade, descobertas, solidão e
sonhos.
§
Rodrigo Araujo,