[Cinema japonês] Susumu Hani e a Nuberu Bagu

By rodrigo araujo - junho 29, 2014


Susumu Hani é um dos nomes responsáveis pela chamada Nouvelle Vague japonesa (Nuberu Bagu) e a renovação cinematográfica pós-1950. Nome que, junto a outros aqui citados, continua na obscuridade de nosso público.  Filho de um pai marxista e amante da obra de Brecht, e de mãe e avós cristãos, Hani teve uma infância conturbada, da exclusão a um sentimento de inferioridade, já que era gago – e não estranho ecoar um personagem de Yukio Mishima, Mizoguchi, no romance “O tempo do pavilhão dourado”, que compartilha da mesma deficiência no mundo: ser gago, gagueira que não é apenas o liame da dicotomia belo-feio, mas também representação da monstruosidade que era sua vida em uma realidade tão monstruosa quanto, nas ruínas do pós-guerra. A gagueira levou Susumu Hani logo cedo aos livros de Freud, que configura ao campo psicológico um traço forte do seu cinema. Neste ponto, Susumu Hani e o personagem Mizoguchi, de Yukio Mishima, partilham de uma mesma ordem: a gagueira como uma porta fechada diante do mundo, e precisava ser aberta.


A obra de Hani é vasta. Começou documentarista, de 1952 a 1961, com uma incursão duradoura na África, para só então passar para o cinema ficcional. Em entrevista à Lúcia Nagib, Susumu Hani conta como se deu sua contribuição à Nuberu Bagu e como era sua relação com a Nouvelle Vague francesa: “Talvez haja semelhanças entre a Nouvelle Vague francesa e japonesa. E talvez eu seja um pouco responsável por isso, porque, quando tentei entrar no cinema ficcional, ele era completamente controlado pelos grandes estúdios, que no entanto estavam em declínio [...]. Fui um dos dois ou três que tentaram introduzir a nouvelle vague francesa no mundo cinematográfico japonês, porque achei que seria uma boa dinamite para destruir uma parte do controle dos grandes estúdios , e abriria o portão para todos nós” (In: "Em torno da Nouvelle Vague japonesa", 1993, Editora Unicamp, p. 64). Dinamite é uma palavra ideal não só para o método que Hani expõe no comentário, de introduzir a nouvelle vague francesa no espaço cinematográfico japonês, como também é ideal para o próprio cinema de Hani. Os primeiros filmes de Hani (dados obtidos em entrevistas do próprio cineasta) focam na criança, na juventude em um mundo em colapso. Focam também no lugar da mulher, e na mulher do pós-guerra. Ainda na entrevista à Lúcia Nagib, Hani diz: “Duas décadas após a guerra, a condição interior particular da mulher passou a entusiasmar-me, porque havia justamente esse misto de inocência e experiência [...]” (Idem, p. 67). Foi também pela influência do cinema francês de Jean Vigo, especificamente o filme “Zéro de conduite”, que Hani fotografou a delinquência juvenil. Outro comentário digno de nota para fechar uma caracterização do que é o cinema deste singular fotógrafo da juventude diante do mundo em colapso que foi Susumu Hani, é o da pesquisadora Maria Roberta Novielli: “Hani explorou o universo infantil e dos jovens em geral com um estilo de absoluta liberdade [...]. Os pequenos personagens que apresenta pertencem cada vez mais ao mundo violento e degradado dos marginalizados” (In: “História do cinema japonês”, Editora UnB, 2007, p. 224).


O que atualmente temos de disponível do acervo de Susumu Hani é o filme de 1968 “Nanani: O inferno do primeiro amor”. Demasiadamente cru, impactante, e sob uma belíssima trilha sonoridade, O Inferno do primeiro amor corporaliza o que o autor referiu à dinamite. É um filme explosivo.  Com co-autoria de Shuji Terayama (na entrevista à Lúcia Nagib, Hani pontua que Terayama apenas contribuiu com pequenas sugestões na hora das gravações, já que Hani fazia tudo “na hora”, por isso deu-lhe a co-autoria nos créditos), este filme conta a história de amor dos jovens Shun e Nanami. Em todo o tempo do filme, Shun é a corporalização do jovem inocente, ou da inocência juvenil, sempre com um olhar tímido, com um sorriso quase forçado. Mas não são só flores a vida e trajetória de Shun. O filme começa com uma tentativa mal sucedida de relação sexual entre Shun e Nanami e com o relato de nosso protagonista de ter uma infância rebelde, tendo consequências familiares de abandono por parte dos pais. Shun é acusado de tentar molestar uma garotinha no cemitério que, segundo ele, era sua única amiga. Jogado em sessões de hipnose, ficamos sabendo que Shun também era assediado pelo padrasto. Sua válvula de escape era o seu amor por Nanami: uma garota tipicamente flauberiana que muito se assemelha a Emma Bovary, antológico personagem de Gustav Flaubert. Nanami, uma modelo que trabalha em uma espécie de agência nudista que mistura em si uma experiência de lesbianismo e sadismo. O que lhe assemelha o ar flauberiano é que Nanami, dividida entre os gracejos de Shun e o tédio da realidade, projeta o desejo em um homem casado e pai de dois filhos que frequenta o seu local de trabalho a fim de vê-la nua. 


Lucia Nagib e Maria Roberta Novielli têm comentários diversos referentes a este filme antológico e forte de Susumu Hani. Para Novielli, O inferno do primeiro amor é “um canto de amor dedicado à juventude violentada pelos adultos” (p. 226), que inscreve a falta de liberdade sexual, a mercantilização do corpo, mas sobretudo (aí a tese de Novielli) a tentativa de subtrair a solidão (p. 227). Diferentemente da leitura mais existencial de Novielli, focada na solidão dos personagens, Lúcia Nagib opta por uma leitura mais crua, mais sociológica. Para Lúcia Nagib, o assédio que Shun sofre do padrasto configura-se como uma “experiência homossexual” de Shun, haja vista que Shun não reage ao assédio, logo consente (só apenas no final do filme que Shun reage aos assédios do padrasto). Nagib também atenta para o complexo de Édipo que Shun mantém com a mãe, e por fim classifica Nanami como prostituta. A tese de Lucia Nagib é que mesmo tendo essas “experiências pervertidas” (p. 67) e atos delinquentes, “mesmo assim sua imagem continua sendo a da inocência” (idem). Logo, no cinema de Hani a inocência não é sinônimo de virgindade e pureza, mas está mais ligada a um campo de descobertas – ou no máximo, relembrando a colocação de Susumu Hani sobre a mulher, que é perfeitamente cabível para a leitura de Shun: um misto de inocência e experiência.


Não concordo com a classificação de Nanami como prostituta feita por Nagib. Nanami é flauberianamente a corporalização de uma mulher que deseja... Ler Nanami como prostituta é cair no velho lugar abominável de ler Emma Bovary, mulher à frente de seu tempo, como mulher desqualificada. Não obstante, simpatizo mais à leitura de Maria Roberta Novielli, no olhar mais existencial para o filme – não desqualificando a leitura de Lúcia Nagib. Shun e Nanami, mishimianamente pensando, são jovens que querem abrir a porta fechada que os separa do mundo, jovens tateando nas savanas de um mundo em ruínas. Ironicamente Shun, ao fim de sua trajetória turva e acinzentada, tal como Macabéa, antológico personagem de Clarice Lispector, vira estrela. E vira estrela aos pés de sua amada, após seu único sorriso sincero na descoberta do que é o amor, cena em que Shun grita: “este é o primeiro amor!!!”. Por fim, as palavras que Susumu Hani utiliza na entrevista à Lúcia Nagib melhor definem Shun e este singular filme: deslocado, destrutivo. Um filme raro dentro do que será a Nouvelle Vague japonesa e dentro do cinema japonês. Raro por construir um espaço de sensibilidade, descobertas, solidão e sonhos. 















































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Rodrigo Araujo,

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