Não é fácil assistir
aos filmes de Teruo Ishii (1924-2005). Posso até notar um diálogo entre Ishii e
Susumu Hani: filmes que alternam entre a beleza e a crueza. Não é fácil ver Ishii,
pois seus filmes estão centrados no sadismo e na crueldade. Conhecido como um
mestre no cinema de horror, Teruo Ishii, demasiadamente conhecido pela crítica
cinematográfica brasileira, começou com um filme de boxe, em 1957, e só depois
enveredou em um gênero mais erótico-grotesco. Desta fase mais madura de Ishii, o
filme que se sobressalta e aqui quero lançar um brevíssimo comentário é “O
horror dos homens deformados” (1969) que, inclusive, foi banido no Japão por
algumas décadas.
Em Horrors of Malformed Men,
Hirosuke Hitome é um estudante de Medicina que acorda desmemoriado em um
manicômio, entre mulheres loucas com os seios a mostra e um certo homem
misterioso, o qual Hirosuke irá matar e assim fugir do manicômio. A fuga de
Hirosuke é embalada por uma canção que ele não sabe a origem e pelo desejo de
encontrar respostas, bem como encontrar o lugar físico de imagens que lhe
perturbam a memória. No meio do caminho (vejam a ironia drummondiana), encontra
uma dançarina de circo, Hatsuyo, que também conhece a canção misteriosa que
permeia a mente de Hirosuke e o conduz ao litoral japonês. De fugitivo a
viajante, Hirosuke é conduzido até uma pequena região litorânea onde se passa o
funeral do Sr. Genzaburo Komoda, que é idêntico a ele. Quando Hirosuke
desenterra o corpo do falecido Komoda e vê que ambos têm uma mesma cicatriz no pé,
o que parece óbvio é que Hirosuke seria uma espécie de duplo do Sr. Komoda.
Tese que se corrobora quando Hirosuke aparece em público na aldeia dizendo ser
o Sr. Komoda “ressuscitado” – Hirosuke forja assumir o lugar do morto para
investigar as suas memórias fragmentadas. Até este ponto, o filme permanece na
interrogativa de muitas questões, bem como permanece interrogativa a memória de
Hirosuke. Imerso na farsa, Hirosuke tem de atuar entre a viúva Chioko e a jovem
Shizuko, por quem irá se apaixonar. Não obstante, Hirosuke se vê direcionado
para uma ilha nas proximidades, onde o pai do falecido Komoda se encontra; uma
ilha que quase ninguém ousa ir, pois o velho da família Komoda , dizem, está
louco, enclausurando a pequena ilha. Agora, o plano do filme muda da
interrogação para a perversão da ilha.
Ao chegar à
ilha, Hirosuke se depara com um palco de crueldade e sadismo, chegando mesmo a
lembrar de Salò
ou os 120 dias de Sodoma (1975),
clássico de Pier Paolo Pasolini. O cenário (ou a diferença em relação a
Pasolini) aqui é de mulheres e homens presos e expostos a experimentos pelo
louco Sr. Jogoro Komoda que habita a ilha. Não tarda muito para Hirosuke também
ser prisioneiro. O peculiar dos prisioneiros da ilha é que todos eles estão
envolvidos em uma espécie de dança, carregada de visualidade e surrealismo.
Acerca desta parte do filme, é perfeitamente justa a observação de Rubén
Redondo, no site Cine Maldito: “Es
imposible no sentirse cautivado por el tejido visual con el que construyó Teruo
Ishii su Horrors of Malformed Men”(1). Esta intrigante dança é conhecida no Japão como Butô e tem como
mestre o dançarino Tatsumi Hijikata, que estrategicamente
faz o papel do velho louco Jogoro Komoda. O próprio criador do Butô define-o: “Butô
é um cadáver levantando, desesperadamente, em busca de um pouco de vida”. O
crítico de cinema Roberto Acioli também nos deixa uma ótima caracterização do
Butô e de seu criador: “O dançarino Tatsumi Hijikata prestava muita atenção às
sombras dos cadáveres nas paredes, na pele estragada, nos corpos deformados, na
destruição, nos estupros e nos ferimentos. Com essa lembrança de suas visões
diárias, e procurando mostrar aquilo que todos queriam esconder (a doença, a
destruição dos órgãos, o prazer ligado ao sofrimento, à androginia, a
homossexualidade, a morte), ele criou em 1959 o ankoku butô, ou dança
das trevas”(2). Isto elucida a operação de Teruo Ishii juntamente do
dançarino-ator Hijikata em dar movimento àquilo que nos é mórbido. E, claro,
basta recorrermos ao campo da Estética para levantar questões como: qual a
fronteira do belo e do mórbido? Até que ponto o mórbido não pode ser belo?
Prisioneiro, Hirosuke
desvenda as intrigas familiares dos Komoda: é irmão mais novo do falecido Komoda
e irmão da jovem Shizuko, por quem está perdidamente apaixonado, e ambos sendo filhos
do velho sádico Jogoro Komoda. É revelada também a mãe dos Komoda, Toki, que
Jogoro manteve sob cárcere privado e em situações degradantes durante semanas devido
à traição da mulher.
Parodiando um poema do
poeta piauiense Torquato Neto, vamos à “explicação do fato”: por trás de todo
palco de horror instalado na ilha e por trás das cenas bizarras da Srª Toki
comendo os insetos que estavam a comer o corpo putrefato do seu amante, há um
limite muito tênue neste filme de Teruo Ishii entre amor e dor na relação do
sádico Jogoro e sua esposa infiel. Em uma volta aos mitos gregos, Caos, o vazio
primordial, gera Gaia (a mãe, a terra), Tártaro (o abismo), Eros (o amor), Érebo
(escuridão) e Nix (a noite). De Gaia, gera Urano (céu), a quem Gaia se une, gerando
outros vários filhos, como os ciclopes, titãs e suas irmãs. Filhos que o pai,
Urano, irá odiar. Temendo o poder de Urano de gerar outros filhos, a mãe Gaia
presenteia o filho mais novo, Chronos, com uma foice, e este, segundo a
mitologia, corta o órgão genital de Urano para impossibilitá-lo de procriar. Da
mutilação, o falo de Urano cai no mar, mas, na queda, o sêmen do falo decepado
mistura-se com as brumas do mar, dali nascendo, então, Afrodite, deusa do amor
e da beleza.. É o amor nascendo da dor, ou amor e dor caminhando juntos...(3)
Jogoro parece abrir uma ferida na relação entre paixão e sofrimento (no final
apocalíptico do filme, parece haver um perdão e arrependimento por parte de
Jogoro). Jogoro também testa os limites da dor no corpo humano, quer ver o
sofrimento (sadismo) e até onde vai a resistência de seu princípio de
crueldade. Uma frase de Jogoro esclarece: “Depois de ter os deixado lá por 5
dias, vi que as pessoas não morrem facilmente....”.
O horror dos homens
deformados -- que mais parece funcionar como um filme em planos (o teatral é
sintomático neste filme) -- chega a seu último e apocalíptico plano, ou a zona
das conclusões. Por trás do erótico-grotesco, um filme que muito interessa ao
campo da Estética, do Teatro e da poesia. Um filme que também diz respeito ao
sofrimento, e parece perambular os arrabaldes da podridão humana. Um
apocalíptico “banho de fogo” para lembrar o filósofo romeno Emil Cioran que em
seu primeiro livro, “Sur les cimes du désespoir” (1990) (Nos cumes do
desespero), já expõe a vida como um mal gosto, um plágio, algo incendiário que
só o enfermo, o homem decaído, pode experienciar este abismo, este nada que
conduz à morte. É clássica uma frase de Cioran deste livro sobre o desespero e
que diz muito deste filme de Ishii: “eterna é a miséria da humanidade” [Éternelle
est la misère de la humanité] (Cioran, Sur les cimes du désespoir,1990 p.100).
Se para Cioran a vida é uma agonia prolongada, assim também é a vida agonia
prolongada exposta neste filme. Em um livro recém-traduzido para o nosso
idioma, O Livro das Ilusões (2014), Cioran apresenta uma tese muito peculiar e
que será catalisadora para este nosso filme em questão. Para Cioran: “Só o sofrimento
muda o homem. Todas as outras experiências e fenômenos não conseguem modificar
essencialmente o temperamento de ninguém nem modificar certas disposições suas
a ponto de transformá-las completamente. [...] Com a cultura e o espírito não
se muda grande coisa; mas é incrível o que pode transformar a dor” (Cioran, O
Livro das Ilusões,2014, p.25).
É nas trilhas do
pensador romeno Cioran, do mito, da dança das trevas que é o Butô, que este
filme é caótico porque é desmoronamento: em um abalo agônico, põe tudo em
ruínas. Nós, que assistimos, podemos seguir um certo ensaísta francês muito
caro à crítica literária, Maurice Blanchot, e pôr tudo a erguer-se das ruínas(4). Muitas
e muitas outras coisas gostaria de falar deste filme e , claro, muitas coisas
um especialista em cinema poderá apontar. Fico com um aforismo do Cioran que
também traduz muito este filme: “Toda minha vida é um batismo de sombras”
(Cioran, O Livro das Ilusões,2014,p. 143).
NOTAS
(1) -- Artigo de Rubén Redondo, em:
(1) -- Artigo de Rubén Redondo, em:
(2) -- Artigo do crítico Roberto Acioli, em:
(3) -- Há
uma leitura muito boa acerca deste mito em Jacqueline de Romilly, "A
Tragédia Grega", Tradução Ivo Martinazzo, Editora UnB, 1998.
(4) -- Refiro a duas obras de Maurice Blanchot para pensar a ideia de ruínas: "La escritura del Desastre, (em espanhol), Edição Monte Avila,1990; "A conversa Infinita", Tomos I e II, Editora Escuta.
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Rodrigo Araujo,
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