Boitempo III, de Carlos Drummond de Andrade. Poemas escolhidos

By rodrigo araujo - julho 28, 2014

 Para mim, os cinco melhores poemas do livro Esquecer para lembrar: Boitempo III (1980, 2ª edição da Editora José Olympio), do Carlos Drummond de Andrade. Ou o que se pode aproveitar desta última obra da trilogia Boitempo. Penso que, das 3, esta seja a menos interessante do Drummond. Lembro que na obra Passos de Drummond, do Alcides Vilaça, o crítico também faz nota à frustração de leitura de alguns poemas da trilogia Boitempo. Mas sim. É uma difícil escolha essa de organizar poemas escolhidos. E há estes poemas interessantíssimos selecionados.

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Procurar o que


O que a gente procura muito e sempre não é isto nem aquilo. É outra coisa.
Se me perguntam que coisa é essa, não respondo, porque não é da conta de ninguém o que estou procurando.
Mesmo que quisesse responder, eu não podia. Não sei o que procuro. Deve ser por isso mesmo que procuro.
Me chamam de bobo porque vivo olhando aqui e ali, nos ninhos, nos caramujos, nas panelas, nas folhas de bananeiras, nas gretas do muro, nos espaços vazios.
Até agora não encontrei nada. Ou encontrei coisas que não eram a coisa procurada sem saber, e desejada.
Meu irmão diz que não tenho mesmo jeito, porque não sinto o prazer dos outros na água do açude, na comida, na manja, e procuro inventar um prazer que ninguém sentiu ainda.
Ele tem experiência de mato e de cidade, sabe explorar os mundos, as horas. Eu tropeço no possível, e não desisto de fazer a descoberta do que tem dentro da casca do impossível.
Um dia descubro. Vai ser fácil, existente, de pegar na mão e sentir. Não sei o que é. Não imagino forma, cor, tamanho. Nesse dia vou rir de todos.
Ou não. A coisa que me espera, não poderei mostrar a ninguém. Há de ser invisível para todo mundo, menos para mim, que de tanto procurar fiquei com merecimento de achar e direito de esconder.
(Drummond, Boitempo III, 1980, p. 43).

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Solilóquio do Caladinho

a mentira é difícil
e não por ser mentira:
porque exige da gente
a arte de inventar.

a alegria é difícil
de se manifestar,
não por ser alegria.
porque é forte demais.

o sofrimento é fácil
de se exibir na face.
tudo dói, tudo queima
sem fósforo aparente.

os parentes me falam
uma língua só deles
eu entendo a linguagem
das pedras sem família.

tudo é mais complicado
se se tenta explicar.
um gato me fitou,
percebi tudo: nada.
(Drummond, Boitempo III, 1980, p. 43-44).




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A norma e o domingo


Comportei-me mal,
Perdi o domingo.
Posso saber tudo
das ciências todas,
dar quinau em aula,
espantar a sábios
professores mil:
comportei-me mal:
não saio domingo.        

[...]

Lá fora a cidade
É mais provocante
E seu pálio aberto
Recobre ignorantes
Dóceis ao preceito.
que aventura doida
no domingo livre
estarão desfiando
enquanto eu sozinho
contemplo escorrer
a lesma infindável do
meu não-domingo?

[...]

Abomino a ordem
Que confisca o tempo,
Que confisca vida
E ensaia tão cedo
A prisão perpétua
Do comportamento.
(Drummond, Boitempo III, 1980, p. 93-94). 


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A decadência do Ocidente
 (trecho)

Somem os poetas,
vão-se os prosadores.
Não há mais cultura
e  se depender
dessa geração
de racha-piões,
que irá restar
do nosso idioma
e nossa tradição?
Ah, nos velhos tempos
isso aqui andava
cheio de Camões,
dos Ruis, dos Bilacs
e dos Castros Lopes...
(Drummond, Boitempo III, 1980, p. 99).

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Estes crepúsculos

Concordo plenamente.
Estes crepúsculos são admiráveis.
Nada no mundo iguala estes crepúsculos.
O sol é um pintor bêbado reformulando o céu
e até as montanhas e as árvores.
Convida a gente a viver em estado de pedraria,
de sonho, incêndio, milagre.

Estes crepúsculos sublimes criam outra Belo Horizonte,
não a dos tristes funcionários seriados,
outra Minas, outro Brasil.
Estes crepúsculos...
Mas eu não tomo conhecimento deles.
Estou triste.
Estou sepultado em mina de carvão.
Ela passou de bonde e não me olhou.
(Drummond, Boitempo III, 1980, p. 167-168).

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