Keisuke Kinoshita e seu cinema de sensibilidade I
By rodrigo araujo - agosto 10, 2014
Nascido em 1912, Keisuke Kinoshita foi
contemporâneo e colega de um grande mestre do cinema nipônico (chegaremos a
ele, em breve), Akira Kurosawa, mais conhecido do Ocidente. Não tendo se
internacionalizado como Akira, Kinoshita logo cedo serviu à guerra, e sua
experiência no serviço militar será um dado importante e decisivo para seu
cinema. O que sabemos de suas primeiras obras como diretor (cf. Maria Novielli,
História do cinema japonês, 2007, p.
123) é que Kinoshita começou com o gênero comédia. É também sabido que a sua
comédia “A volta de Carmen” [Karumen Kokyo Ni Kaeru] (1951) é a primeira obra em cores da
história do cinema japonês. Após o filme “Uma tragédia japonesa” [Nihon no higeki] (1953), que foca em um
conflito de gerações, Kinoshita parece
deixar o gênero comédia e partir para outros caminhos, novas rotas. E
experimenta, após 1954, um cinema mais emocional, ou como diz a pesquisadora
Maria Novielli, “um período de
sentimentalismo” (Novielli, Idem,
p. 200). O filme que marca este novo caminho mais intimista de Kinoshita é “Vinte
e quatro olhos” [Nijûshi no Hitomi] (1954). Optei por deixar este filme, em
especial, para a segunda parte destas breves notas sobre o cinema de
sensibilidade de Kinoshita. Opto por começar com um filme que é considerado sua
obra-prima, justamente para fazer deste filme uma abertura necessária para isto
que chamo de cinema de sensibilidade do diretor. Começo com o filme “A badala
de Narayama” [Narayama Bushiko]
(1958).
“A balada de Narayama” conta a história de Orin,
moradora de um vilarejo do interior do Japão e que está prestes a completar 70
anos. E decide seguir a tradição local de recolher-se ao monte Narayama todos
aqueles que atingem os 70 anos. Para isto, Orin se vê na difícil tarefa de dar
o adeus a seu filho, que reluta em deixar a mãe partir. Quero lançar aqui algum
comentário sobre as questões centrais deste peculiar filme de Kinoshita. Quanto à velhice. A tradição de
recolher-se ao monte Narayama aos 70 anos já indica a maneira sensível e
bergmaniana que o diretor trata da velhice. Recorro aqui a um verso de um poeta
gaúcho, Carlos Nejar, que funciona perfeitamente como epígrafe a estas notas: "Envelhecer é como a memória nos pune" (Carlos
Nejar, in: Odysseus, O Velho, 2010).
Com efeito, recorro também ao ensaio XIII do prosador Michel de Montaigne,
precursor do gênero ensaio, “Sobre a Experiência” (Livro Terceiro). Um de seus
maiores ensaios, neste ensaio Montaigne nos dá uma visão bastante clara da
velhice como um movimento último (a vida, para Montaigne, era puro movimento),
a velhice como um estar-diante-da-morte.
Cito Montaigne: “[...] Salvo a velhice,
que é um sinal indubitável da aproximação da morte [...]” (Montaigne, Ensaios, 2010, p. 553). Montaigne nos
direciona não a um mero “filosofar a velhice”, mas a aprender a sofrer aquilo que é inevitável. Inspirado na De senectude, de Cícero, Montaigne nos
leva, enfim, à velhice como ação do tempo. Se é na velhice e na convalescência que
Montaigne via a “melhor maneira” de experienciar a morte, e se é possível que o
filósofo romeno contemporâneo Emil Cioran tenha bebido neste ensaio, não cabe
aqui discutir. O caminho que me leva de Montaigne ao filme de Kinoshita é , pela via da velhice, um olhar o mundo e
além: um retirar-se do mundo. Vale
lembrar o Ensaio XXXVIII do Livro Primeiro, “Sobre a solidão”, que Montaigne
diz justamente do retirar-se do mundo: “É
tempo de desligarmo-nos da sociedade, posto que nada podemos lhe conceder”
(Montaigne, 2010, p. 170). Retirar-se, em Montaigne, quer dizer: um
distanciamento. É esse mesmo distanciamento
montaigniano que Orin executará ao retirar-se para o monte Narayama. Essa
retirada para o monte, de acordo com a tradição dos moradores da pequena vila,
nada mais é que uma retirada para o encontro com a morte. O sinal indubitável
que falava-nos Montaigne.
Mas temos neste “Balada de Narayama” uma velhice
vista de modo bastante epicurista. Digo isto lembrando de uma máxima bastante
clássica do filósofo helênico Epicuro, em suas “Sentencias Vaticanas”, que diz
que “não é o jovem que merece ser felicitado, mas o velho que tem passado uma
vida bela”, pois o velho atinge a velhice como se chega a um porto seguro,
pleno de suas satisfações. Ora, o diálogo deste filme com o filósofo grego não
se resume a esta máxima. O próprio Epicuro era conhecido como o “filósofo que
viva no jardim” e refugiava-se nele. O monte Narayama é este local de refúgio, de abrigo, de hospitalidade (no sentido
mesmo derridiano).
Quanto à
tradição, algum comentário: A resistência do filho traz à tona um
sentimento de perda. De solidão. De vazio. Afinal, o encontro com o monte
Narayama é um encontro com a morte. A morte nos traz esse sentimento de nada,
de vacuidade. Uma leitura mais atenta na cultura japonesa revela com os
japoneses, em sua tradição, souberam lidar com a morte. A olhar de frente a
morte. Não vê-la como uma “intrusa”, ou inimiga. Se os poetas simbolistas,
franceses e brasileiros, viam a morte como intrusa e fugiam para o sonho, os
japoneses não precisaram sonhar. E como Orin corporaliza tudo isto... Um
encontro com a morte, com o vazio, com o silêncio. E não é a toa que Orin sobe
o morro em total silêncio. Um silêncio quase em estado de meditação. Durante o
filme, lembrei-me de uma tese do crítico literário francês Maurice Blanchot,
que a arte diz respeito ao silêncio do
mundo (Blanchot, O espaço literário,
2011, p. 41). Sim. Parece que tudo neste filme é silêncio, silêncio do mundo. Concordo
com aqueles que veem na resistência do filho de Orin em não deixá-la partir um
signo do arcaísmo das tradições (principalmente quando falamos de um Japão
antes e pós-guerra). Lembro sempre de uma frase do Claude Levi-Strauss, em seu
livro A outra face da lua, escritos sobre o Japão (2012), que dizia
que as culturas são incomensuráveis. Não são estáticas. Mas digo mais: entre
Orin e o monte Narayama, o filme acerta ao fotografar uma vida de silêncio,
sacrifício e renúncia. É neste ponto que o filme se entrelaça de vez com o
poético! Cinema e literatura em perfeita
transa, como gostava da acepção da transa entre campos discursivos o
crítico literário e filósofo paraense Benedito Nunes. Em face disto, parece
inviável, ao menos para mim, aceitar a argumentação da Maria Novielli de que o
ato de recolher-se ao monte Narayama seja um “desumano costume”, um “trágico
infortúnio” (Novielli, op. cit., 2007,
p. 201). Não há nada de desumano no encontro com aquilo que é inevitável ao
homem: a morte. Não há nada de trágico, visto que a morte (finitude) é, por
essência, algo que diz respeito do ser-aí humano, para pensarmos com o filósofo
alemão M. Heidegger e seu conceito de ser-para-a-morte,
em Ser e Tempo (2010).
Concluo com a observação de uma maestria visual
que “A balada de Narayama” carrega. Um filme, como lembra a Novielli, que se
utiliza de um cenário e de uma trilha sonora próprios do teatro Kabuki. Concluo
com a segura afirmativa de que os temas da morte, o tempo, o silêncio são mesmo
nucleares neste peculiar filme. E tudo isto faz-se abertura para a fina
sensibilidade que Kinoshita nos deixa em forma de obra-prima. Um filme que toca
na vida em estado de arte. Por isso, foi necessário começar com ele. Sem
dúvidas, um filme para ficar na memória e para toda uma vida.
§
Rodrigo Araujo.
0 comentários