Os poetas, como os cegos, podem ver na escuridão¹

By rodrigo araujo - junho 15, 2010


      Olhar e compreender o Outro vem sendo uma questão reflexiva no Ocidente, principalmente quando destacamos duas conjecturas sobre esse olhar: uma, nas proposições filosóficas do alemão Martin Heidegger sobre o entrecruzar do ocidente com o oriente; outra, quando esse Outro nos completa.

1 Trecho da música Choro Bandido de Chico Buarque de Holanda e Edu Lobo.




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Comecemos com o pensamento heideggeriano. A cultura oriental é marcada por uma riqueza de detalhes visuais e imagéticos e configurada no gestual. A cultura oriental, portanto, é carregada de signos não-verbais. Para esse assunto sobre a riqueza oriental indico alguns filmes: Um, A Escola do Riso, de Mamoru Hosi, 2004, onde o criador de peças japonesas, Tsubaki, quer levar o humor para o teatro – em pleno país em guerra – mas terá de ter a aprovação do censor Sakisaka-san. O filme é praticamente todo ambientado na sala do censor, o qual veta várias partes e, no contexto, acaba se tornando co-autor sem saber. A partir desse filme podemos fazer relação com os teatros japoneses – O teatro Nô, por exemplo. Aqui, cito Heidegger (ver o livro A Caminho da Linguagem, 2003): “para entender o Nô é preciso morar lá e entender o modo de ser Japonês. Num ângulo interno, esse vazio estaria carregado de significação”. E o Pensador lança um questionamento (o capítulo do livro é um diálogo entre um Pensador e um Japonês): “O vazio é então a mesma coisa que o nada, isto é, o vigor que procuramos pensar como o outro de toda vigência e de toda ausência?” (HEIDEGGER, 2003, p.87). E responde o Japonês, determinando a palavra “vazio” como designação (e o que entendemos) da palavra “ser”. Destaca também que “o palco japonês é vazio”. Logo, vazio designa – em essência – significação, pensamento. Marco Aurélio Werle (ver o artigo Angústia, nada e morte em Heidegger, 2003) trata do vazio não como negatividade, mas como sujeito de si, um vazio que fala muito mais que palavras. Antonio Carlos P. Rocha, tratando do vazio e do silêncio relacionando com o Zen-Budismo, (ver Zen Budismo e a Literatura, SP, 2004) diz: “Quando estamos calados, quando não falamos,não  estamos  apenas mudos,  estamos  em  silêncio.  Mas o que representa esse silêncio?  Significa pensamento, introspecção”. Pensamento já diagnosticado pela Santella como intrínseco à linguagem (ver Santaella, Matrizes da Linguagem e Pensamento, 2001).
            O outro filme a indicar é Rashomon, de Kurosawa, 1950, onde se podem observar os gestos dos atores em cena, o desenrolar da diegese em busca de uma verdade – e então se discute por um viés filosófico o que é a verdade – a partir dos quatro testemunhos sob a perspectiva do marido, da mulher do morto, do bandido e de uma testemunha. Não obstante, outro filme que indico o qual podem-se notar esses aspectos sígnicos gestuais como linguagem é Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annaud, 1981, reconstituindo o período pré-histórico onde o segredo de fazer o fogo é posto em xeque, filme de grande valor antropológico e cultural e bem elaborado pela formação de diálogo entre os homens das tribos, construindo um sistema de signos e de idéias para estabelecer comunicação – teoria vista em F. de Saussure (ver Curso de Lingüística Geral, 2006).
            Ainda no campo de discussões aspecto sígnico não-verbal, o movimento concretista brasileiro dos anos 50 navega por essas proposições. O poema concreto desvincula-se da forma fixa, toma liberdade. O que antes se tinha uma poesia fixa, presa às normas de composição (como sonetos, rimas, ritmos) agora ela encontra-se livre na folha em branco para ocupar as diversas dimensões do papel. Alguns pesquisadores vêem a poesia concreta como um rompimento da poesia como labor, da poesia arquitetada como propôs João Cabral de Melo Neto, ao assumir a liberdade e desvinculação dos versos na página em branco. A poesia nunca foi tão bem elaborada e tão bem esculpida como na poesia concreta, a posição das palavras, o jogo visual, o lance de dados de Mallarmé, a poesia solta gritando nos muros... (para isso, ver A. e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Teoria da Poesia Concreta, 2006). E por que não dizer que a folha em branco do poema concreto é o próprio silêncio não dizível? Por que não dizer que Oswald de Andrade lança os dados com “Amor-Humor” – e até um Drummond com “Cota Zero” para a poesia concreta?
            E podemos dizer que nada é mais belo que ver com a alma, não com os olhos. E fotografar com os olhos da alma, possível? Para esse aspecto, outro filme indispensável da intertextualidade: Janela da Alma, de João Jardim, 2002. Documentário de 73min, o fotógrafo (cego) Evgen Bavcar relata sua técnica fotográfica, aproximando-se das pessoas e se afastando para captá-las pela objetiva da câmera, utilizando-se do campo associativo de imagens mentais (princípio semiótico Peirceano). Há também o relato do poeta Manuel de Barros (também com problemas de cegueira) e seu belo poema “Difícil fotografar o silêncio. Entretanto, eu tentei”.
            Mas e as pessoas que, mesmo enxergando, estão cegas? Sim. Nada mais justo que trazer à luz dessa indagação a espetacular obra de José Saramago (outro com problemas de cegueira), Ensaio Sobre a Cegueira, 1995, pondo em xeque o mundo das aparências, as pessoas (metaforicamente) cegas, vivendo uma imensa caverna de Platão, que durou anos e anos para acontecer. Na narrativa de Saramago, vários personagens de diferentes classes sociais ficam cegos de repente, não uma cegueira comum, uma cegueira “branca” e desconhecida. E nada mais conveniente: o governo decide os isolar em um antigo manicômio para quarentena. A partir desse isolamento proposital (e por que não brilhante) todo o pudor entre ambos é deixado, você não é mais pelo que você é em sua hierarquia social ou o que você tem (o capital é questionado na narrativa). Puta, ladrão, médico, aqui são todos um igual. Cito um trecho da obra: “O medo cega, disse a rapariga dos óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo nos cegou, o medo nos fará continuar cegos”.
A humanidade está às escuras, sem rumo, presos na caverna de Platão e o isolamento por essa cegueira branca (uma cegueira patológica é negra como um fechar de olhos, o branco é o simbólico) faz o grupo de personagens enxergar mais além (com a alma), sair da caverna de Platão – que em sua alegoria tenta mostrar o mundo das idéias e o mundo sensível, que é preciso ir além das sombras para alcançar a verdade, atingir a luz. Para quem se interessar pelo tema da Caverna de Platão, pode-se ver o filme A Vila, de M. Night Shyamalan, 2004, para inter-relacionar com a alegoria da caverna de Platão e alcançar o mundo das idéias (a pergonagem-protagonista do filme é cega!).
            Do mesmo modo que ocorre no filme do Shyamalan também ocorre no Ensaio Sobre a Cegueira: há um processo doloroso ao sair da caverna e atingir a luz, há a difícil adaptação.  Platão mostrou que na caverna, tudo é familiar e cômodo ao viver olhando a tela na parede e as sombras. Sair dela e atingir a luz é abrir uma crise no ser humano pelo excesso de luz. No manicômio, a adaptação dos personagens cegos em quarentena é difícil, chegando a um ponto de caos. Sair da aldeia, atravessar o muro e chegar à cidade é difícil, pois no meio caminho há barreiras da personagem a vencer, como enfrentar o medo. (E bem disse Saramago que o medo nos cega!).
            De volta à caverna, as sombras reconfiguram a visão e o homem não consegue dizer o que viu fora dela (devido ao excesso da luz). Ao fim da cegueira na diegese de Saramago, há o grande silêncio. Silêncio de voltar à caverna.
             E falando em silêncio, Paulo Leminski também pede um pouco de silêncio:

Não sou o silêncio
Que quer dizer palavras
Ou bater palmas
Pras performances do acaso.
Sou um rio de palavras
Peço um minuto de silêncios



2.

          Outra conjectura do viés de olhar o Outro é que esse Outro nos completa. Começo com o excelente texto da Marília Amorim (Cronotopo e Exotopia in Beth Brait, Bakhtin, outros conceitos-chave, 2006) acerca da idéia de Exotopia para o teórico M. Bakhtin. Nós não somos heróis de nossa vida, o Outro é quem irá nos completar, seu discurso é que irá formar uma imagem acabada de mim. O acabamento aqui não tem sentido de aprisionamento, ao contrário, é um ato generoso de quem dá de si. É através da exotopia que eu irei completar minha imagem no Outro, apenas nele (p.97). E eis que a visão do homem está num horizonte sem fim, o que Bakhtin dirá “filosofia do ato” (p.96).
          Resumindo em linhas (muito) gerais a teoria bakhtiniana: se perguntarmos a nós mesmos, como nós sabemos o formato do nosso rosto, a cor do nosso cabelo, a cor dos nossos olhos, se nossa visão é direcionada para a frente? É através da imagem refletida no espelho que vemos a nós mesmos. E se não existisse espelhos? O Outro nos diria como somos. Esse exemplo resume a exotopia. Muitos outros podem ser elencados, principalmente na literatura, como por exemplo, o olhar do Outro sobre o externo, o aproximamento/distanciamento que teóricos estrangeiros fazem da nossa literatura, como fez com maestria Willi Bolle ao ler o Grande Sertão: Veredas (muito embora não caberia essa discussão dentro deste espaço).
          E quantas vezes não nos deixamos levar pelas opiniões do Outro lançadas sobre nós? Quantas vezes não mudamos de roupa, por exemplo, devido à opinião do Outro que nos completa? São esses múltiplos olhares sobre nós que definem o pensamento de Bakhtin (é a partir desses pressupostos teóricos de exotopia e também de cronotopia que em outros capítulos Bakhtin chegamos à idéia de polifonia. A cronotopia é um corte espaço/temporal ligado ao individuo em suas múltiplas experiências).
          Concluo essas conjecturas com o poema Contranarciso de Paulo Leminski, ótimo intertexto para refletir o pensamento do olhar:

Em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e você
assim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós.

1987.


ARAUJO, RODRIGO M. S.


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1 comentários

  1. É incrível como aliteratura por ela mesma, nos remete para universos da humanidade onde os mais humanos, ou seja, aqueles que têm atitudes cruamente humanas, conseguem reconhecer desde suas mazelas até a perfeição de um momento "vazio" ou de "ausências"!!!! AMEI SEU BLOG!! Ive

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