"A Morta", de Oswald de Andrade: um convite ao teatro antropofágico

By rodrigo araujo - dezembro 15, 2010

"A Morta", peça de Oswald de Andrade escrita em 1937, é a última e mais densa peça do poeta modernista. Apresentada em três quadros, O País do Indivíduo, O País da Gramática e O País da Anestesia, esta obra soma-se a outras duas peças do autor, O Rei da Vela e O Homem e o Cavalo, e formam a “Trilogia da Devoração” do Teatro Antropofágico de Oswald.

    A peça reflete grande inquietude deste poeta, criando um teatro que possibilita um experimento com a linguagem. Muitos conhecem o Oswald de Andrade poeta e crítico do modernismo, e suas peças teatrais passam despercebidas pelo olhar do leitor. Um erro impetuoso, pois suas peças são verdadeiros gritos. Diante d’A Morta, o leitor deve montar um mosaico, pois a peça é uma teia de referências (intertextos), os personagens não têm suas personalidades próprias, funcionam como índices. Beatriz, a personagem central, que foi a musa inspiradora de Dante; Horácio, grande poeta lírico; o personagem Urubu, que faz referência ao O Corvo de Edgar Allan Poe; o Poeta, que apresenta sua autópsia; o Hierofante, uma espécie de bruxo que abre a peça e chama a plateia a assistir a autópsia do indivíduo; o personagem Uma Roupa de Homem, que vai dialogar com a vanguarda, quer nome mais surreal que uma roupa de homem?.
            Essa grande metáfora de assistirmos a autópsia do individuo revela a sociedade podre e, a partir daí, passamos a refletir sobre ela. O mergulho subjetivo para a morte nos faz pensar na vida, é preciso “visitar a morte” para conhecer a vida, como similarmente fez Saramago em Ensaio Sobre a Cegueira, onde era preciso estar na cegueira para se analisar a vida. Num jogo de duelo novo vs antigo, metalinguagem e poética se fundem na peça (o personagem O Poeta no primeiro ato lírico – O País do Indivíduo – transmite a metalinguagem.
            A peça é de um grande valor poético e metalingüístico. Reflete tanto os ideais de vanguarda, gramáticos – que os modernistas atacaram, veja-se no segundo ato lírico da peça, "O País da Gramática", o indivíduo preso a essa “ordem conservadora”; vale lembrar também que a ruptura com essa ordem conservadora gramatical foi defendida pelos futuristas, e Oswald bebe muito do futurismo. Abaixo, transcrevo o discurso do Hierofante, personagem que abre a peça e nos convida para a autópsia.
O Hierofante
(surgindo na avant-scène, senta-se sobre a caixa do ponto).
 - Senhoras, senhores, eu sou um pedaço de personagem, perdido no teatro. Sou a moral. Antigamente a moralidade aparecia no fim das fábulas. Hoje ela precisa se destacar no princípio, a fim de que a polícia garanta o espetáculo. Esse estiole o ríctus imperdoável das galerias. Permanecerei fiel aos meus propósitos até o fim da peça. E solidário com a vossa compreensão de classe. Coisas importantes nesta farsa ficam a cargo do cenário de que fazeis parte. Estamos nas ruínas misturadas de um mundo. Os personagens não são unidos quando isolados. Em ação são coletivos. Como nos terremotos de vosso próprio domicílio ou em vastas penitenciárias, assistireis o indivíduo em fatias ou vê-lo-eis social ou telúrico. Vossa imaginação terá de quebrar tumultos para satisfazer as exigências da bilheteria. Nosso bando precatório é esfomeado e humano como uma trupo de Shakespeare. Precisa de vossa corte. Não vos retireis das cadeiras horrorizados com a vossa autópsia. Consolai-vos em ter dentro de vós um pequeno poeta e uma grande alma! Sede alinhados e cínicos quando atingirdes o fim do vosso próprio banquete desagradável. Como os loucos, nos comoveremos por vossas controvérsias. Vamos, começai!






ARAUJO, RODRIGO M. S.

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