Uma leitura do filme Air Doll: alegoria e crítica do corpo e do sujeito

By rodrigo araujo - março 04, 2011




            Adentrar na cultura japonesa, para nós ocidentais, não é fácil. E é impressionante o número de pessoas, esses cults da vida, que amam tudo oriundo do Japão. Mas para sentir a essência da arte japonesa é preciso transcender. Ou como diria um filósofo chamado Martin Heidegger, “para entender o Japão é preciso morar nele”.  É de essência que podemos citar o teatro japonês, o Kabuki, ou um Rashomon, de Kurosawa (quer filme mais imagético e simbólico para pensar a arte japonesa?).

            Mas quero falar de um filme muito feliz: Air Doll ou Boneca Inflável no português, do diretor Hirokazu Koreeda. A uma simples vista, o roteiro parece não apresentar nada de especial: um garçom visivelmente comum e sem muitos projetos de vida, e sua boneca inflável que, além de servir para os desejos sexuais, é sua companheira. Mas a boneca, chamada Nozomi, começa a se humanizar, cria movimentos e descobre que o mundo é muito mais que aquela esfera inserida. Nozomi começa a explorar o bairro, já que seu ‘dono’ trabalha o dia todo, arruma um emprego e constrói laços sociais. E o diretor Koreeda não dispensa lirismo e uma excelente trilha sonora para representar essas questões.  Uma das cenas mais lindas do filme é quando Nozomi sente as gotas da chuva na palma da mão e olha para o tempo nublado. A transformação do corpo de plástico para o corpo vivo (o rompimento de fronteiras) traz o sentimento, não só de humanização, mas de percepção. E o grande desafio da personagem é sobreviver num mundo cercado de pessoas sem muitas ambições de vida, o que coloca Nozomi à frente, atemporal. Atemporal porque ela se coloca na condição de objeto e, portanto, fora de uma ordem temporal biológica, e também porque ela carrega a grade crise existencial de ser um “ser vazio”.
            Outra cena bela do filme é quando Nozomi conversa com um senhor qualquer num banco de uma praça. Desabafando com o senhor de ser um ‘ser vazio’, fadada ao destino de servir apenas como objeto de uso para seu dono, o senhor a responde: mas todos nós dessa cidade somos vazios. Aqui reside a critica do filme. Lançados olhares mais críticos sobre o filme do Koreeda, podemos levantar dois pontos para análise: a questão do corpo, que é culturalmente construído – e a questão do corpo vazio e submisso; e a questão do sujeito no mundo. Tratarei resumidamente esses dois pontos, a ponto de que não venha me tornar enfadonho e de que ninguém bata no computador ou na madeira de forma assustada.
            A boneca que cria vida é a grande metáfora do filme para se discutir o corpo, portanto não se assustem com o elemento fantástico, passa longe de Koreeda a ideia do filme Brinquedo Assassino do boneco que ganha vida (!). O corpo é o eixo das relações com o mundo, é dele que emanam os sistemas simbólicos, ou como diria Durkheim, o fator de individualização. Mas não me interessa entrar na sociologia do corpo. (ver David Le Breton). Convém destacar os três sintomas do corpo: 1º) o corpo num mundo que é apresentado emotivo e móvel; 2º) o corpo que é culturalmente construído; 3º) a simbiose do corpo frente às relações tecnológicas (ver Lucia Santaella ‘Corpo e Comunicação’, cap.1). Certo que o corpo é um nó de múltiplas inquietações e está diante de uma pluralidade de caminhos (acentuadamente na contemporaneidade ou a chamada pós-modernidade). Com isso, é inevitável o surgimento de novas subjetividades que são socialmente inscritas. Foucault por exemplo – falar de corpo tem que falar de Foucault – diz que o corpo preexiste como superfície, constituído de discurso. O corpo, meus amigos, também é linguagem. Ou para lembrar uma frase do Deleuze: “o corpo é aquilo no qual mergulha o pensamento, a fim de chegar ao impensado”.
O filme também levanta a discussão do corpo submisso, do corpo vazio. Lembro de uma frase do Foucault no livro Vigiar e Punir: “O corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso”. Essa frase vai de encontro às novas formas de punir no espaço do século XVIII e XIX e os castigos que tiverem o corpo como objeto para controlar suas forças. A metáfora de Nozomi submissa nos faz pensar essas questões. Mais além: Nozomi como alegoria de uma sociedade e de corpos submissos. E vazios porque não nos conhecemos, ou como diria a filosofia heideggeriana, não conhecemos nosso ENTE (suspenso no ser), não transcendemos. No mundo, é preciso transcender, conhecer a essência de nosso ‘ente’ para compreendermos o ser-no-mundo. Quantas e quantas Nozomis não estão por aí nas ruas? Não somos um pouco Nozomi?
Paralelo às questões do corpo, o filme põe em xeque a questão do sujeito, porque se o corpo é constituído culturalmente, o sujeito é constituído historicamente. Lucia Santaella tem uma brilhante fala: O corpo está sob o fantasma do sujeito. Isso porque o sujeito só se expressa por meio de um corpo para ser universalizante. O sujeito é. E não há como pensar um sujeito fora do campo da história, da linguagem, da cultura, principalmente das relações de poder. Pelo sujeito podem-se pensar novas formas de subjetivação. De um lado subjetividades em movimento (que foi pensada por Deleuze); de outro, subjetivações que são regimes de signos (o que Peirce na semiótica teorizou, e mais além: o próprio homem como um signo). O sujeito, frente ao objeto (Outro), abre as relações de identidade. E como podemos ler uma identidade em crise, numa pós-modernidade? (ver Bauman, ‘Identidade’, Giddens, ‘Identidade e Modernidade’). Ora, a personagem Nozomi carrega toda a crise de identidade da pós-modernidade. O sujeito também pode ser expresso na discussão do ser que perpassa toda a obra de Martin Heidegger, pelo viés da metafísica, hermenêutica e lógica. Através do filme Air Doll, essas e outras questões podem ser amplamente discutidas. Um filme que merece ser visto e que deve ser lido para além da historinha contada.


ARAUJO, RODRIGO M. S.

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