A poesia que vaza pelas frestas: um pouco de Paulo Leminski

By rodrigo araujo - junho 23, 2011


         No campo da literatura pós-romântica – para lembrar o termo usado por Antonio Candido em Literatura e Sociedade – o momento decisivo veio com a inovação estética modernista e sua afirmação singular de modernidade, bem como os dois grandes nomes que revolucionaram não só o romance brasileiro, como também um projeto estético literário: Guimarães Rosa e Clarice Lispector. De um lado, Clarice onde o mergulho intimista dos personagens perpassava a narrativa, e de outro Guimarães Rosa que, em um excelente estudo topoanalítico, pinta um sertão que é a alegoria do Brasil, não aquele sertão que foi retratado na literatura dita ‘regional de 30’. Mas convém notar que antes, em termos de inovação estética sobre o romance, Oswald de Andrade, lançara o seu enigmático Memórias Sentimentais de João Miramar, estruturalmente fragmentado, tendo a sua diegese conduzida por cartas e anotações.  

Outro momento decisivo para o cenário da literatura foi o boom do movimento concretista dos anos 50, com os nomes dos irmãos Campos e Décio Pignatari. A poesia tinha, de vez, se libertado da forma fixa e parnasiana das estrofes. Liberdade. Os versos e as palavras podiam, agora, navegar soltas pela página em branco. Assim como João Cabral de Melo Neto esculpia e arquitetava seus versos como uma construção na disposição da página. E a página em branco era carregada de silêncios. Haroldo de Campos, no livro Teoria da Poesia Concreta, notou que “O poema concreto vige por si mesmo. Ele se acrescenta ao mundo dos objetos como uma entidade nova. É um objeto por direito próprio”. Disse Décio Pignatari que "um poema é feito de palavras e silêncios. Um poema é difícil”. Ora, esse silêncio da página em branco a espera das palavras é aquela filosofia zen oriental que tanto marcou a geração underground e o movimento contracultural, não um silêncio meramente ausente de significados na concepção ocidental, mas um silêncio não-verbal que diz, filosofia Heideggeriana carregada de significados. Vale notar que compreender a estética oriental sempre foi o desafio de nós, ocidentais. Percorrer os caminhos desse Outro é cair num imenso campo imagético – para lembrar o termo usado por Ezra Pound – tanto cultural quando histórico. Tire-se, por exemplo, a escrita do ideograma, um símbolo que traduz um significado ou o teatro japonês ‘Nô’, que bem lembrou Heidegger em seu livro A Caminho da Linguagem que, para entender o Nô era preciso morar lá e entender o modo de ser japonês.
Aqui no Brasil, toda essa concepção filosófica traduziu o poeta marginal e seus lances de dados, na lição de Mallarmé. Nesse contexto de efervescência vanguardista surge Paulo Leminski, um “Rimbaud curitibano com físico de judoca escandindo versos homéricos como se fosse um discípulo de zen e bashô” assim o definindo Haroldo de Campos, uma grande figura da intelectualidade brasileira, participando na Revista Invenção e na Semana Nacional de Poesia de Vanguarda, em meados de 1963, escrevendo versos em grego da Ilíada. Leminski foi múltiplo e sempre inquieto, transitou por vários caminhos, da publicidade à figura do professor de história desaguando em sua esfera literária. Como grande estudioso do grego e do clássico, fez traduções e era leitor assíduo de Bashô. Fez poesia – onde ficou conhecido, o romance experimental Catatau que é um desafio até hoje, contos reunidos em seu livro Gozo Fabuloso, ensaios em Anseios Crípticos 1 e 2, haikais que são formas poéticas compostas de ideogramas etc. Leminski foi um guerreiro das palavras, um aventureiro que levou o oficio de escrever até o fim de sua vida breve – tão breve quanto uma poesia-síntese haikai e a poética da brevidade Mallarmé-Bashô, os nomes que marcaram sua vida. “Escrevo. E pronto / escrevo porque preciso / preciso porque estou tonto / ninguém tem nada com isso”. Esse é seu compromisso com a palavra refletida em sua poesia metalingüística. Em seu itinerário poético, desova seus poemas já definindo a direção de sua poesia, como observa a pesquisadora do poeta, Solange Rebuzzi. A década de 70 foi a geração do beatnik, rock dos Beatles, da contracultura hippie.  O poeta marginal, aquele “à margem” de uma cultura dominante, ou o poeta underground, é assim posto por Leminski em Anseios Crípticos 2:

 A poesia concreta é o “poster”, o “out-door”, os  anúncios luminosos, e, hoje, o vídeo-texto. A poesia “beat” é o recital, o poema feito para ser falado, caudalosas torrentes esperando uma voz.


O fator determinante que as diferenciam, poesia concreta da poesia beatnik, é a aproximação que a poesia concreta tem para o campo visual, assim como a beatnik tem com a oralidade, esta, imbricando para a poesia sonora.
A participação de Leminski no Mosteiro de São Bento e suas freqüentes visitas à biblioteca, onde conheceu o latim, o grego, Dante, Virgilio etc, assim traduzia sua inteligência sagaz diante dos outros, pode ser vista nesse poema sem título:            

               nunca sei ao certo
              se sou um menino de dúvidas
              ou um homem de fé
             
              certezas o vento leva
              só duvidas continuam em pé
      

Seu biógrafo, Toninho Vaz, bem lembra uma frase do poeta, que ele dizia: “Fazer literatura para mim (...) é uma necessidade fisiológica (...). Escrever é só umas das coisas que o ser humano sabe fazer. E eu me sinto mais humano depois de fazer isso”. Na intensidade de sua vida poética, o esquecimento versus lembrança se alternavam como peças na construção de um mosaico. Ora o eu-lírico queria ser lembrado, ora diluído. Em um poema que ele inscreveu para o II Concurso Popular de Poesia Moderna de 1966, externava:

              quem me lerá
              amanhã
              quando for
              amanhã
              amanhecerá
              a flor
              e a letra
              que agora é minha
              e linha?


Em outro poema, nota-se o apelo poético “Lembrem de mim/ como de um
que ouvia a chuva/ como quem assiste missa/ como quem hesita, mestiça/
entre a pressa e a preguiça”. (Vê-se a indagação de um aquele que parava para ouvir a chuva, quantos de nós hoje, com a pressa do dia, paramos para ouvir a chuva?). Logo depois o eu-lirico logo quer ser esquecido:
Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme
.

            Grande leitor da transcendental filosofia budista, dizia que tentar explicar o Zen era como prender o vento numa caixa. Tanto essa filosofia quanto as artes marciais têm grande importância na poética leminskiana. Não só treinava o corpo, como também os poemas. A poesia de Leminski, que vaza por todas as frestas, ultrapassa fronteiras e transborda como um rio:

Não sou o silêncio
Que quer dizer palavras
Ou bater palmas
Pras performances do acaso.
Sou um rio de palavras
Peço um minuto de silêncios
[...]


Mas é o poeta um homem com uma dor o qual nos mostra o poema: “Um homem com uma dor/ é muito mais elegante/ Caminha assim de lado/ como se chegasse atrasado/andasse mais adiante”. O poeta nasce dessa dor de inconformidade com o mundo e penetra surdamente no reio das palavras – para lembrar a lição de Drummond – onde sua dor seja elegante. Por isso a literatura é revolucionária e uma fuga da realidade, como mostrou o filme de Woody Allen “A Rosa Púrpura do Cairo”, de 1985. Pois ela surge dessa falta no mundo. Diz-nos Leyla Perrone-Moisés que “a literatura aponta sempre para o que falta, no mundo e em nós. [...]. O horizonte da literatura é sempre o real que se pretende representar em sua dolorosa condição de falta”. Mas lembremos que as dores do poema não são as dores do poeta: já deixou a lição Fernando Pessoa que “o poeta é um fingidor”. O poeta universaliza sua dor para que aquela seja a nossa dor refletida, não mais a do poeta. Quantas vezes já não fechamos a porta do quarto para esquecer a realidade gritante, quantas vezes já não sentimos certa inconformidade do mundo e seus problemas e, a partir disso, quantas vezes já não descontamos essa inconformidade no papel? Assim que a literatura se faz universal, para que possamos nos identificar nela, e esse homem do poema que caminha de lado somos todos nós. Porque a literatura é esse homem convertido na obra.


ARAUJO, RODRIGO M. S.

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