Literatura, Arte e Mercadoria em diálogo: A ilusão da liberdade da arte.

By rodrigo araujo - agosto 14, 2010


            A pergunta que sempre será recorrente é: para que serve a arte? Uma pergunta, pois, ausente de pensamento. E aqueles que fazem essa pergunta também questionam para que serve a literatura e, pior, querem saber o que literatura tem “a ver” com arte. Como se estivéssemos falando de um Serviço Militar para a arte ter de servir. Quem acha que a poesia deve servir para alguma coisa ou dar lucro não ama, de verdade, a poesia. Para pensar a arte e a literatura com pano de fundo o mundo burguês e a mercadoria, trazemos à luz o ensaio de Paulo Leminski, Arte In-útil, arte livre? (que está no seu livro Anseios Crípticos, 1997) e, após, alguns trechos de outros ensaios do mesmo livro, para concluir o pensamento da arte e da poesia.

ARAUJO, RODRIGO M. S.

ARTE IN-ÚTIL, ARTE LIVRE?



A curiosa idéia de que a arte não está a serviço de nada a não ser de si mesma é relativamente recente. Data do romantismo europeu do século XIX, apogeu da 1ª Revolução Industrial e da hegemonia burguesa, momento em que o artista se toma um desempregado crônico.
Arte e artesanato. A indústria veio para substituí-lo.
Sem função social mas ainda cheia de sua própria importância, a arte entre horrorizada e fascinada, volta-se contra o mundo utilitário que a cerca, negando-o, criticando-o, como um não-objeto feito de antimatéria.
O mundo burguês é anti-artístico. A arte não precisa mais dele.
Já pode nascer a “arte pela arte”.


DELÍCIA E LIÇÃO
Uma arte, uma literatura in-útil: nenhuma idéia poderia ser mais estranha à Idade Média católica, herdeira das concepções greco-latinas sobre o duplo papel da arte: “delectare”, “agradar”, e “docere”, “instruir”.
Para um europeu letrado da Idade Média (quase sempre um clérigo), parecia a coisa mais lógica do mundo que a atividade artística e literária estivesse, como as demais atividades, subordinada a um fim educativo, edificante, a serviço da salvação da alma dos fiéis.
A obra literária tem deveres morais. Não há lugar para uma obra blasfema, sacrílega, iconoclasta, dissolvente, corruptora.
A obra de arte é a expressão de uma norma. Não um gesto criminoso.
Como os homens que a fazem, deve lutar contra o pecado.
A desmesurada liberdade da literatura ocidental moderna pareceria aos medievais o triunfo de Satanás na terra. O pecado da literatura moderna, aliás, é o mesmo de Lúcifer, a soberba, o orgulho de se declarar autônoma, além do bem e do mal.
O Renascimento italiano, cético, crítico, mundano, faz nascer uma nova concepção de arte e literatura, não mais subordinada a deveres morais ou pedagógicos. Uma arte voltada apenas para o "delectare": nasce o conceito de “Beleza”, o específico artístico, independente de metas didáticas ou balizas éticas.
A reação católica da Contra-Reforma, em luta contra o protestantismo, restaurou a antiga doutrina da arte a serviço de objetivos ideológicos ou doutrinários. A “beleza” só tem razão de existir porque deve fazer a Verdade se gravar mais fundo no coração dos homens. E essa Verdade vem de fora: pré-existe à obra de arte.
Não que o protestantismo fosse mais liberal em matéria de arte e literatura. Ao contrário. Lutero e Calvino eram duas mentes medievais típicas. Certas correntes protestantes chegaram mesmo a desvalorizar por completo qualquer atividade artística como sendo coisa de Satanás.
A visão utilitária da arte e da literatura prevalecerá até o século XVIII, incluindo os Enciclopedistas. A vasta obra literária de Voltaire está a serviço das “Luzes”, do trabalho de esclarecer as mentes, ridicularizar o preconceito, desmistificar s superstição. Voltaire não é um poeta, tal como entendemos a palavra hoje, uma consciência problemática expressando em palavras seus conflitos. É um educador, um pedagogo, que usa os recursos da literatura para ilustrar certos princípios “morais”.
Com s Revolução Francesa e o fim do Antigo Regime, dissolve-se o difícil equilíbrio entre o autor e seu público, entre o autor e seus mecenas ou protetores.
De agora em diante, entregue aos acasos do mercado, o escritor está no mato sem cachorro.


A VIA FRANCESA
A doutrina da “arte pela arte” foi formulada, pela primeira vez, com todas as letras, na França do século XIX, pelos poetas parnasianos e simbolistas (Gautier, Leconte de Lisle, Baudelaire, Mallarmé). Era também o credo que inspirava o desesperado artesanato estilístico de Flaubert.
Sua formulação foi sentida pelos artistas como uma verdadeira inovação, a libertação da arte de quaisquer compromissos com o não-artístico, a moral, a política, a exaltação patriótica, a tradição nacional, o Bem, a Verdade.
Na literatura romântica, ainda havia uma tensão moral interna que, na França, teve sua grande expressão na caudalosa produção poética de Victor Hugo, hoje pouco prezada (mal conseguimos compreender o verdadeiro endeusamento de que Victor Hugo foi objeto em vida).
Significativamente, a evolução da poesia moderna, em fins do século XIX e inícios do XX, deriva diretamente desses cultores da “arte pela arte”: a poesia modema não existiria sem Baudelaire ou Mallarmé
Isso se deve principalmente ao fato de que esses poetas, libertados dos lastros morais ou patrióticos, puderam fazer a poesia avançar tecnicamente, em termos de linguagem, até os extremos limites, de que o “Lance de Dados” de Mallarmé é o paradigma último.
Descendendo deles, a poesia mais significativa do século XX nasce da “arte pela arte”. Da arte como inutensílio. Não como veículo de princípios “superiores” ou “maiores”.
Por essa razão, boa parte da melhor poesia deste século é poesia sobre poesia, poesia crítica, poesia tendo o próprio poetar como objeto de inspiração. Metalinguagem, como se diz no jargão técnico. Mesmo quando tem uma “motivação moral” por trás (o que é inevitável, já que o homem é um ser político, logo moral).
A doutrina da arte pela arte é uma decorrência natural da sobrevivência da arte numa sociedade regida pelo mercado.
No mundo burguês, a obra de arte só pode ser duas coisas: ornamento e mercadoria. Um afresco renascentista na parede de uma Igreja é um complexo composto ideológico, pulsando de tensões morais e intenções de envolvimento coletivo. Um quadro de Manabu Mabe na sala de um banqueiro é apenas um complemento do tapete e do padrão dos sofás.  
          Certas artes, pintura, escultura, se prestaram melhor a essa transformação em mercadoria eticamente neutra, buscadora apenas de qualidades plásticas e cromáticas, técnicas e sintáticas.
Ornamento e mercadoria, a linguagem da pintura moderma perdeu todo o impacto subversor das vanguardas do início do século (expressionismo, fauvismo, futurismo, cubismo, surrealismo, abstracionismo geométrico, tachismo). Ao ouvir falar em arte modema, o burguês puxa o talão de cheques.
Mas uma arte resistiu com particular vigor a essa comercialização.
E essa foi a literatura, a arte que tem a palavra como matéria-prima. Em especial, a poesia, lugar onde a palavra atinge vigência plena, máxima, substantiva.
Nem era de admirar. Signicamente, as artes são feitas com ícones (cores, sons, melodias, ritmos, movimentos corporais). A literatura, a poesia, é a única arte feita com símbolos (palavras que o poeta, alquimista, tenta transformar em ícones).
Ora, um ícone, uma cor pode ser a-moral e “a-política”.
Uma palavra não pode.
Pra começo de conversa, uma cor é um valor universal, independente de raça, época ou lugar.
Uma palavra, toda palavra pertence a um idioma particular, historicamente determinado no espaço e no tempo, o mais pesado lastro coletivo que o homem pode carregar. Falar basco na Espanha ou gaélico na Irlanda é um gesto, em si, político (as nações deveriam coincidir com o espaço de uma língua ou dialeto).
Cada palavra tem sua história, sua biografia, sua etimologia.
Seu uso deflagra uma constelação de sub-significados e sentidos que, em cada idioma particular, tem certo desenho próprio e intransferível.
A palavra é, essencialmente, política. Portanto, ética.
Daí, talvez, a dificuldade de transformar a literatura, a poesia, em mercadoria.
Na ficção, o ramo comercialmente mais próspero da literatura, não é a palavra a verdadeira mercadoria. É o enredo, a trama, o entrecho, vale dizer, desenhos, isto é, ícones. Aquelas coisas que Brecht queria, em vão, vender, entrando na fila dos roteiristas de Hollywood...
O puro valor da palavra está na poesia. Por isso, é sempre considerada mercadoria difícil. “Poesia não vende” é um dos mandamentos do Decálogo mínimo de qualquer editor sensato. Pois não vende mesmo. O destino da poesia é ser outra coisa, além ou aquém da mercadoria e do mercado.
Mal obram e mal pensam aqueles que reclamam da renitência das casas editoras em publicar poesia. Deveriam mais é ficar alegres. A poesia, afinal, é a última trincheira onde a arte se defende das tentações de virar ornamento e mercadoria, tentações a que tantas artes sucumbiram prazeirosamente.
E não deixa de intrigar o fato de a doutrina da “arte pela arte” ter sido formulada, exatamente, por poetas. Não por pintores, nem por romancistas. Transformada em mercadoria, a obra de arte é transformada em nada. Os teóricos da “arte pela arte” apenas recolheram essa maldição. E lhe deram sinal positivo.
Desde então, a arte está em conflito direto com o mundo. A melhor arte do século XX é um gesto contra o mundo que a rodeia. Uma negatividade.

ADORNO: “ARTE PELA ARTE” DE ESQUERDA
Felizmente, a visão marxista da arte não parou nos maniqueísmos moralistas de Plekhânov, produzindo com Adorno (Theodor W. Adorno) uma espécie de síntese dialética entre o inutensílio da “arte pela arte” e o compromisso ético e político de viver revolucionariamente uma dada circunstancia histórica.
Expoente da chamada Escola de Frankfurt, Adorno já é um contemporâneo de Walter Benjamin e Brecht. Sua reflexão teórica se volta para um capitalismo numa fase muito mais adiantada que a de Plekhânov. Comparado com Plekhânov, Adorno reflete a) num meio intelectualmente muito mais sofisticado e b) numa circunstância não-revolucionária.
Para Adorno, a grandeza da arte está em sua capacidade de resistir ao estatuto de mercadoria, em situar-se no mundo como um “objeto não identificado”. Em sua recusa de assumir a forma universal da mercadoria, a arte, a obra de arte é a manifestação, em seus momentos mais puros e radicais, de uma “negatividade”. Ela é “a antítese da sociedade”. A antítese social da sociedade.
Para Adorno, crítico e leitor agudíssimo das contradições do capitalismo, a arte só tem uma razão de ser enquanto negação do mundo reificado da mercadoria. Vale dizer, enquanto inutensílio.
A tensão ética da obra está nesta recusa em virar mercadoria.
Misteriosamente, os defensores da “arte pela arte” tinham razão.


              
ESTADO, MERCADO. QUEM MANDA NA ARTE?




Toda postura política “de esquerda” tende a uma certa aversão à idéia de “liberdade” da arte. De autonomia da arte em face das solicitações políticas e morais que a História coloca.
É natural.
A ilusão da “liberdade” da arte é burguesa e capitalista.
É sua transformação em mercadoria que dá à obra de arte a ilusão de ser “livre” De não ser determina de fora.
Na primeira metade do século XX, até a 2ª Guerra, chegou a haver espaço histórico para uma arte, mais ou menos, livre; foram as vanguardas (futurismo, Dadá, surrealismo). Era um momento de passagem: o mundo burguês da “Belle Époque” desabava diante da catástrofe da Primeira Grande Guerra, sobre cujas ruínas cresceu a Revolução Russa. A Europa perdia a hegemonia política para os Estados Unidos e a URSS. As vanguardas artísticas, antenas da raça, prenunciaram a catástrofe que se avizinhava. Num momento assim, de tempestade, sobram espaços nulos, ambíguos, indecisos, onde a vocação libertária da arte pode se realizar, em plenitude. A arte de vanguarda quis agredir. E como agressão foi recebida pela ordem artística vigente, reflexo nos céus da ordem sócio-política que vai na terra.
Na segunda metade do século XX, o capitalismo avançou em direção a formas superiores, mais complexas, da sua dinâmica interna. Não desabou simplesmente, como previam os utopistas de esquerda. A Europa podia estar liquidada como centro do mundo. Mas, com a 2ª Grande Guerra, entravam em cena os Estados Unidos, com seu fantástico potencial econômico, tecnológico e industrial, injetando segunda vida ao capitalismo europeu, que agonizava das feridas da Primeira Guerra Mundial.

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A partir da segunda metade do século XX, a arte do Ocidente, toda, é (ou será) mercadoria. Ou nem será percebida como arte, reconhecida como tal, coisa transparente, invisível, neutralizável por sua própria imponderabilidade...
A própria palavra “vanguarda”, nesta segunda metade do século, já é apenas um “revival”, uma contrafação das verdadeiras vanguardas, as do início do século.
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O cinema e a canção gravada são as artes de hoje.
Ambos mercadorias no mais supremo grau.
           Por que é que o status de mercadoria dá a ilusão de “liberdade”? O capitalismo tem dentro de si, em sua essência, uma espécie de “amorfia”.
É sua grande força.


POESIA: VENDE-SE


Um livro de literatura (seja lá o que isso queira significar) é a mais singular das mercadorias.
Quando compra uma caixa de sabão-em-pó, você sabe que, no mínimo, aquele produto vai deixar sua roupa mais branca, uns mais outros menos. No caso do livro de literatura, a situação é bem diversa.
Ao comprar um romance, você quase não sabe nada sobre ele. Será emocionante? Será tedioso? Quem sabe , um grande romance, mas para outras pessoas que não eu.
Os riscos aumentam extraordinariamente quando você compra um livro de poemas. Aí sim você está no mato sem cachorro.
No início do século, não, você pisava em terreno seguro.
Poesia era aquela caixinha de bombons chamada soneto, um pedaço bem cortado de frases enfeitadas, que emitia sempre o mesmo plim, como um canário na gaiola ou uma caixinha de música.
Nos tempos de Bilac, você sabia o que comprava.
Nos anos 20, os modernistas de S. Paulo influenciados por doutrinas alienígenas, dinamitaram a central elétrica. E, em lugar do verbo agradar, passaram a conjugar o verbo agredir.
De lá pra cá, as coisas se tomaram nebulosas. A literatura era uma certeza e uma tranqüilidade. O modernismo a transformou em problema. De agora em diante, cada escritor tem que viver, em si mesmo, todo o processo da literatura, de Homero até o “best-seller” de ontem à tarde.
Os mapas se perderam. As pistas foram apagadas. E as tábuas da lei voltaram ao pó donde vieram. As ordens voltaram ao caos primordial. Não há mais normas. Cada um está condenado a ser seu próprio legislador.
E a confeccionar sua própria receita. Programar, sozinho, seu próprio processo de criação. Ser o único responsável pelo “soft-ware” da sua produção.
Ao contrário do que dizem, a poesia concreta paulista, nos anos 60, ampliou ainda mais o indeterminado dessa liberdade, sabe Deus se bênção ou maldição.
Liberdade de escrever no plano e até no volume (e não mais apenas na linha). Liberdade de construir novos vocabulários, novas grafias, novas sintaxes.
Não há outro jeito.
A crise virou substância.
Poesia viva, hoje, é a que já nasce se perguntando:
- Poesia, ah, poesia, que diabo isso quer dizer?
(Por falar nisso, alguém aí quer comprar a minha crise?)

PAULO LEMINSKI. ENSAIOS E ANSEIOS CRÍPTICOS. ED. UNICAMP, 2011.

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